O filósofo francês Michel Foucault constatou uma relação intrínseca entre saber e poder, contrariando as concepções tradicionais que separavam essas esferas, entendendo que o saber não era meramente um conjunto de teorias científicas e "neutras" que são transmitidas "de cima para baixo", mas como uma diversidade de discursos e práticas que são reconhecidas e legitimadas como "verdadeiras", cuja origem é difusa e múltipla, permeadas por um período histórico específico.
Entender as relações entre saber e poder nos possibilita compreender o modo como a sociedade ocidental se organizou entre normas, controle de corpos e de subjetividades, seja em suas instituições como em seus discursos. Esse entendimento contraria a visão tradicional que relacionava o saber com o conhecimento científico, separado do poder, relacionado às relações políticas e jurídicas. Foucault entendia que ambos se implicam e se constituem mutuamente.
Seu conceito de poder-saber se estende a uma rede complexa de saberes e práticas que perpassa pessoas, discursos e instituições, sem estar localizado apenas num único lugar. Foucault não concebia o poder enquanto uma estrutura fixa, mas estruturado por técnicas distintas e complexas, sendo exercido de maneira difusa, produzindo saberes. O conhecimento não é apenas submisso ao poder, mas relacional a este, onde os saberes são configurados pelos podes e vice-versa.
"Temos antes que admitir que o poder produz saber; que poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua ao mesmo tempo relações de poder."(Michel Foucault, em 'Vigiar e Punir')
Foucault rompeu com a ideia de que o saber seria um conjunto de verdades puras e universais, descobertas pela razão e determinadas pelas ciências. Para ele, saber e poder estão sempre situados historicamente - emergindo em meio a um determinado contexto cultural, social e político, permeando o que se considera as disposições de uma época. Os saberes são arranjos contingentes de discursos e práticas que, em determinado período, são reconhecidos e validados como “verdadeiros”.
Esses saberes não têm uma origem clara ou única, mas múltipla e difusa. Porém, quando falamos de conhecimento científico, estes são difundidos como evidências neutras, universais e permanentes, sem que se perceba claramente sua constituição histórica e contextual. Além disso, os saberes não são decretados apenas por meio das autoridades científicas, mas resultam de uma malha complexa de discursos e práticas cotidianas, sendo sustentados por estas.
"(...) não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento."(Michel Foucault, em 'Vigiar e punir')
Ao invés de conceber o poder como algo que se possui ou que se exerce exclusivamente por figuras de autoridades específicas, Foucault entendia que o poder opera em rede, em diversas relações, nos atravessando por todos os lados. Ele perpassa os indivíduos, as instituições e os discursos, operando por meio dos costumes, normas, saberes e práticas sociais. Seu efeito não é apenas repressivo, mas produtivo - o poder fabrica saberes, corpos, subjetividades, verdades e ideias de normalidade.
Segundo Foucault, "o poder não é uma instituição, nem uma estrutura; tampouco certa força de que sejamos dotados; trata-se do nome que se atribui a uma situação estratégica complexa em determinada sociedade" (em 'A vontade de saber'). Isso significa que o poder não é substantivo, centralizado, nem se localiza num lugar único, mas opera em relação, circula, se infiltra, se reproduz e se transforma constantemente. O poder é capilar, se exercendo por múltiplos lugares, dispositivos e estratégias.
Foucault utiliza o conceito de "saber-poder" para descrever esse entrelaçamento, apontando como certos saberes (como a medicina, a psicologia ou a pedagogia) não são neutros, mas estão profundamente imbricados com as práticas de poder. Os saberes servem para nomear, classificar, distinguir e normatizar os sujeitos, produzindo normas e subjetividades. O saber não apenas descreve a realidade, mas a produz. Quando se define o que é “normal”, “saudável”, “sadio”, “inteligente” ou “louco”, são também instituídos os modos de existência e de subjetivação de acordo com tais determinações.
Em seu livro "Nascimento da Clínica", Foucault apontou como, a partir do século XVIII, a medicina passou a constituir não apenas a doença, mas o ideal do “homem saudável”, partindo de um modelo normativo, onde todos deveriam se direcionar e alcançar. Essa mudança marca a passagem de uma medicina voltada para curar doenças a uma medicina que prescreve modos de vida, regimes de conduta e normas de saúde, articulando saberes que exercem um poder normativo e controle de condutas.
"A medicina clínica não é só um conjunto de descrições médicas, mas também uma série de prescrições politicas, decisões econômicas e modelos de ensino."
(Michel Foucault, em 'A vontade de saber')
Foucault utilizava a imagem do Panóptico, um modelo arquitetônico proposto pelo jurista e filósofo iluminista Jeremy Bentham (1748-1832), como uma metáfora para descrever o modo como o poder atua com seus mecanismos de vigilância, controle e disciplinarização dos corpos nas sociedades modernas. O objetivo da arquitetura do panoptismo não era apenas vigiar, mas fazer com que o próprio sujeito internalizasse o olhar autoritário, passando a controlar e vigiar a si mesmo.
Nesse modelo, o poder não precisa mais estar presente fisicamente, mas passa a ser interiorizado, de modo que a sujeição se torna espontânea. O indivíduo, após ser vigiado, passa a vigiar a si mesmo, treinando seus gestos, sua fala, seu corpo e seu pensamento conforme as normas determinadas. Deste modo, cada sujeito se torna simultaneamente objeto e mantenedor do poder.
O poder disciplinar determina espaços, distribui posições, delimita papéis sociais e configura identidades. Ele está presente nas diversas instituições, como as escolas, as prisões, os hospitais e os quartéis, operando com o auxílio e em conjunto de saberes especializados que observam, medem, classificam e corrigem. Trata-se de uma tecnologia que atua sobre os comportamentos, os corpos, os desejos e as condutas.
Segundo Foucault, o sujeito se constitui atravessado pelas relações de poder-saber. O sujeito não é algo dado, mas produzido, fabricado em meio a práticas de assujeitamento. As tecnologias de poder que atuam sobre os sujeitos são justamente os mecanismos pelos quais os indivíduos se tornam sujeitos de determinadas formas, configurando suas maneiras de pensar, sentir, agir, se relacionar consigo mesmos, com os outros e com os espaços.
De acordo com os estudos de Foucault, o que entendemos por "loucura", "saúde" e "normalidade" são efeitos dessas relações históricas de poder-saber. Não são verdades nem descobertas científicas, mas produções discursivas de um certo momento histórico, que partem de disposições diversas, relacionando saberes e poderes, atuando com interesses específicos. Assim, o que se define como “normal” ou “anormal” varia conforme os regimes de verdade instituídos em diferentes contextos.
Diante desse cenário, a questão que Foucault nos propõe não é buscar uma “verdade” definitiva ou escapar do poder — o que seria impossível, mas possibilitar um pensamento outro, distinto ao estabelecido. Suas reflexões nos incentivam a questionar sobre como libertar o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, como romper com as verdades cristalizadas que governam nossas práticas cotidianas e subjetividades. Enfim, como possibilitar que se pense de outro modo.
"Meu papel – e este é um termo por demais pomposo – consiste em mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam; que elas tomam por verdade, por evidência, alguns temas que foram fabricados em um momento particular da história; e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída. Mudar algo no espírito das pessoas: esse é o papel de um intelectual."(Michel Foucault, em 'Verdade, poder e si')
A filosofia de Foucault é atravessada por essa tarefa crítica e ética, que segue no sentido de desnaturalizar o que parece evidente, desestabilizar o que se institui como verdadeiro e destruir as evidências, de modo a abrir espaço para a invenção de outras maneiras de pensar e viver.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.