Os anos de atendimento como filósofo clínico* me levaram a conhecer muitas pessoas que usavam medicamentos psiquiátricos ou gostariam que seus filhos, cônjuges, amigos, colegas de trabalho, entre outros, os usassem. Algo presente de modo convencionalmente aceito na sociedade – o que chamaremos aqui de princípios de verdade – é pensar o remédio como benefício. Afinal, ele deixa a pessoa “bem”.
Na verdade, a medicação voltada para os ditos “transtornos mentais” de vários espectros tornou-se tão presente quanto o uso de dipirona para dor de cabeça. Usam, por exemplo, o clonazepam (rivotril) para dormir e evitar a “ansiedade” como quem toma um chá de camomila. Há quem recorra ao cloridrato de metilfenidato (ritalina) quando precisa se concentrar em uma atividade, como os estudos, evitando o “déficit de atenção”. A venda desses produtos deve ocorrer sob prescrição médica, mas o acesso não é tão difícil quanto se pensa.
Hoje, há pais procurando ajuda medicamentosa para deixar seus filhos mais dóceis dentro de casa; professores indicando psiquiatras para seus alunos ficarem menos bagunceiros na escola; patrões sugerindo aos funcionários um acompanhamento médico para renderem mais no trabalho. Assim, seguem as atrocidades para as pessoas se conformarem forçadamente com o meio onde vivem.
Certa vez, atendi a um casal por um tempo. Após algumas sessões, o marido me pediu para convencer sua esposa a procurar um psiquiatra ou voltar a tomar uma medicação para “ficar mais calma”. Ela, após meses tendo de lidar com situações difíceis no trabalho e em casa, havia começado a cobrar posicionamentos do marido. Acostumado com a vida até aquele momento, ele passou a se incomodar com a cobrança. Estava “tudo tão bem” até aquele momento. Se ela estava reclamando, pensou ele, certamente era um “desequilíbrio mental” possível de ser restabelecido pelo medicamento. Ela precisava de um remédio para voltar a ser “domesticada”.
Com esses princípios de verdade presentes na sociedade, surge a inquietação diante de quem não demonstra ser “normal”. Hoje, características fora desse parâmetro são justificadas com os diagnósticos mais comuns: Transtorno do Espectro Autista, Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, Transtorno de Ansiedade Generalizada, Transtorno Depressivo Recorrente etc. Após identificados, servem para “explicar” características antes tidas como “esquisitas” nas relações. Todas elas passíveis de certo controle a partir de uma medicação. Enfim, justificado e devidamente medicado.
Mas, tais características não são somente um conjunto de sintomas a serem enquadrados na Classificação Internacional de Doenças (CID-11) ou no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5). Eles podem mostrar aspectos do indivíduo clamando para serem trabalhados. Quando não uma inquietação diante de circunstâncias ou pré-juízos que precisam ser mudados, podem se referir a características ou modos de ser – estrutura de pensamento – contidos na periferia da própria existência por parte ou toda uma vida reivindicando expressividade.
Pode ser a singularidade em busca de ser quem é, distante dos ditames da normalidade. Em busca de certa selvageria na expressividade, com o risco de mostrar aos adeptos do comportamento domesticado, outros modos de manifestar suas características e comportamentos únicos. Talvez, levando seus convivas a perceber, em si, periferias aguardando a oportunidade para aparecer, mostrando que é normal ser singular.
*Os termos em itálico se referem a vocábulos com sentido próprio dentro da metodologia da filosofia clínica. Para maiores esclarecimentos, consulte a bibliografia abaixo.
Bibliografia
CARUZO, Miguel Angelo. Introdução à filosofia clínica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2021.
CARUZO, Miguel Angelo. Lições de filosofia clínica. Porto Alegre, RS: Sulina, 2024.
CARUZO, Miguel Angelo; ALVES FILHO, Paulo. (org). O que é filosofia clínica?: as singularidades e o método. Teresópolis, RJ: Ed. Texto Vivo, 2025.
Revista da Casa da Filosofia Clínica. Dicionário de Filosofia Clínica. Edição Especial 08. Porto Alegre: Outono, 2024.