Foucault - destruidor de evidências

Michel Foucault foi um filósofo francês que teceu críticas muito pertinentes a respeito do modo como a verdade e o conhecimento são produzidos e utilizados nas sociedades ocidentais. Segundo ele, o modo como entendemos e utilizamos as evidências não são atemporais e universais, mas construções históricas e culturais que se transformaram com o tempo, atravessadas por interesses econômicos e morais.

Nesta perspectiva, a maneira como produzimos e utilizamos as evidências e as noções de verdade são configuradas por questões políticas, instituições sociais e normas culturais. Em suas pesquisas históricas constatou que o poder permeia as relações, e que as evidências são utilizadas para reforçar e justificar relações de poder-saber. Por exemplo, evidências médicas foram historicamente usadas para controlar corpos considerados "anormais" ou "desviantes", tal como pessoas com deficiência ou homossexuais.

Foucault entendeu que a ciência não faz descobertas sobre os seres humanos e o mundo, mas cria discursos com valor de "verdade", permeados por condições culturais, interesses morais, econômicos e ideológicos. Deste modo, nem todos os fundamentos das teorias científicas são científicos, mas envolvem práticas sociais, religiosas e culturais, hábitos e costumes de uma época. Além disso, a ciência se constitui em meio às continuidades e descontinuidades, sempre em relação com saberes externos a ela.

A história de uma ciência não é linear e contínua, mas atravessada por exigências, coerções, rupturas, acidentes, desvios, recortes e crises. Foucault buscou entender as condições históricas de enunciação dos discursos e de sua eleição como verdadeiros. Para ele, há condições históricas que possibilitam a constituição dos saberes e das verdades, sendo a ciência influenciada por práticas sociais, históricas, culturais, além de interesses econômicos e relações de poder.

Deste modo, ele questionou a ideia de que a evidência seja algo objetivo e neutro. Para ele, a evidência só pode ter um sentido num contexto histórico e cultural específico, de modo que cada época habilita a possibilidade de certos saberes, assim como rejeita outros, entendendo que as evidências são permeadas e influenciadas pelas estruturas de poder e de saber, que configuram o modo como são percebidas, aceitas ou negadas.

“A ciência é essencialmente discurso, um conjunto de proposições articuladas sistematicamente. Mas, além disso, é um tipo específico de discurso: um discurso que tem pretensão de verdade. (...) A ciência não reproduz uma verdade; cada ciência produz sua verdade. Não existem critérios universais ou exteriores para julgar a verdade de uma ciência.”
(Roberto Machado, em 'Foucault, a ciência e o saber')

É neste sentido que Foucault pode ser considerado um crítico das evidências, pois tornou visível o modo como as evidências são produzidas e configuradas por relações de poder-saber, abalando os alicerces das "verdades estabelecidas", questionando as maneiras como os conhecimentos, as evidências e as verdades são produzidas e legitimadas, destacando que são construções históricas e culturais, atravessadas por relações de poder.

Em suas primeiras obras, realizou uma arqueologia das ciências humanas - dos saberes que tomaram o humano como objeto de estudos, tornando explícitos os fundamentos dos discursos que se apresentam como "verdadeiros", entendendo que suas premissas possuem relação com o contexto histórico de produção, mostrando como as condições culturais engendram as determinações dos saberes, as relações e os exercícios de poder, as disciplinas dos prazeres e os modos de constituição dos sujeitos.

"De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir."
(Michel Foucault, em 'O uso dos prazeres')

Por meio de questões como "Por que fazemos o que fazemos?" e "Quais as condições que nos possibilitaram ser como estamos sendo, pensar como pensamos e fazer o que fazemos?", Foucault problematizou a relação entre a produção de saberes e de evidências científicas. Contrário à tradição filosófica que buscava alcançar verdades universais, ele considerou o contexto histórico, social, econômico e cultural que possibilita a emergência dos saberes e verdades.

Condizente com suas constatações, ele propôs uma nova postura para o intelectual, que não é universalista nem detentor da verdade, mas específico e regional, que fala em nome daqueles que não têm voz e atua em setores específicos e marginalizados, buscando compreender as condições históricas que configuram nossos modos de vida e de pensamento. Suas reflexões possibilitam um olhar crítico sobre as estruturas de poder que permeiam nossa existência, os saberes e as práticas.

"Sonho com o intelectual destruidor das evidências e das universalidades, que localiza e indica nas inércias e coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de força; que sem cessar se desloca, não sabe exatamente onde estará ou o que pensará amanhã, por estar muito atento ao presente; que contribui, no lugar em que está, de passagem."
(Michel Foucault, XV. Não ao sexo rei, em 'Microfísica do poder')
Estas críticas nos convidam a questionar verdades estabelecidas, que parecem sólidas e imutáveis, recusar discursos que se apresentam como verdades absolutas e problematizar as explicações oficiais, que muitas vezes se apresentam como lógicas e coerentes, mas que refletem relações de poder-saber. Assim podemos dar voz aos contrapoderes e valorizar saberes que foram historicamente marginalizados, buscando mecanismos de resistência e conhecimentos descontínuos, estranhos e descentralizados.


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 2: O uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1984.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
MARIGUELA, Márcio. Foucault e a destruição das evidências. Piracicaba: Unimep, 1995.