Pensamento, diferença e ser em Deleuze

Quando buscamos identificar o que há de distintivo em nós, não estabelecemos um contato genuíno com a diferença, mas suprimimos esta, subordinando a uma lógica de representação. A reflexão sobre essa temática foi abordada pelo filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995), que explorou caminhos alternativos às fundações do pensamento filosófico tradicional.

Deleuze subverteu a perspectiva tradicional representacional que subordina a diferença à identidade, compreendendo que a diferença não tem relação com a identidade. Para ele, há uma distinção fundamental entre a imagem do pensamento, caracterizada por ser moral, representativa e dogmática, e o pensamento sem imagem, caracterizado pela mobilidade, impermanência e diferença.

O filósofo entendeu o ser a partir de uma perspectiva imanente, material e aberta, recusando qualquer apreensão intelectualista ou fundação oculta. Seu interesse estava sobre o modo como o ser pode sustentar a diferença ou como a diferença pode sustentar o ser. Para ele, a diferença tem um papel radicalmente novo com relação ao ser, sendo a diferença sua afirmação, não necessitando de qualquer identidade. O ser é multiplicidade e singularidade, e não há prioridade do pensamento sobre a matéria. 

"A representação tem apenas um centro, uma perspectiva única e fugidia e, portanto, uma falsa profundidade; ela mediatiza tudo, mas não mobiliza nem move nada. O movimento, por sua vez, implica uma pluralidade de pontos de vista, uma coexistência de momentos que deformam essencialmente a representação."
(Deleuze, em 'Diferença e Repetição')

A cada instante tudo se reconfigura, se dissolve e se encontra, e o ser se refaz continuamente. No entanto, o pensamento da representação não é capaz de suportar a diferença, pois ela dissipa identidades e desfaz o eu, revelando as singularidades e o devir que nunca cessam, numa constante mobilidade. Em Deleuze, a vida é um fluxo de intensidades pré-subjetivas ou a-subjetivas.

Deste modo, o filósofo destaca a mobilidade do pensamento enquanto algo criativo e produtivo, reconhecendo que o ser não pode ser definido por uma identidade ou por aquilo que não é. O ser é simplesmente singular, múltiplo e diferente em si, não precisando ser identificado como algo. Essas reflexões possibilitam uma perspectiva dinâmica e fluida sobre o ser e a vida, abraçando a mobilidade e a imprevisibilidade, reconhecendo a singularidade, sem a necessidade de definições.

A filosofia da diferença proposta por Deleuze oferece uma alternativa crítica e inovadora às tradições filosóficas que subordinam a diferença à identidade. Nos convidam a pensar novos modos de estabelecer relações com o mundo, com os outros e com nós mesmos, permitindo-nos abraçar a diferença e afirmar singularidades. Trata-se também de uma crítica da visão tradicional que tende a estabelecer identidades fixas e categorias rígidas.

"As diferenças às quais me refiro não tem um sentido identitário, estabelecido a partir da perspectiva da representação - as supostas características específicas de cada indivíduo ou grupo, que os distinguiriam de todos os outros. Ao contrário, refiro-me às diferenças no sentido daquilo que justamente vem abalar as identidades, estas calcificações de figuras, opondo-se à eternidade. O inatual, o intempestivo. Diferenças que fazem diferença."
(Suely Rolnik, em 'O mal estar na diferença')

Deleuze enfatiza a multiplicidade, a heterogeneidade e a complexidade, explorando as diversidades culturais, sociais, políticas, ontológicas e epistemológicas. A diferença é percebida enquanto algo positivo e produtivo, fundamental para a criação de novas ideias, para a transformação e a experimentação de novos modos de vida, um potencial criativo capaz de gerar novas formas de pensar, agir e se relacionar.

Tudo isso coloca em questão as noções de identidade fixa e unidade, destacando que somos seres em constante devir, em constante transformação e interação com o mundo e com os outros. Ela também aborda as dinâmicas de poder que permeiam as relações sociais, destacando a importância de dar voz às falas marginalizadas, desconstruindo conceitos fixos, valorizando a diversidade e reconhecendo a diferença e as singularidades.

O filósofo entende que a fundação do ser é imanente, ou seja, não está acima ou além do mundo material, mas é parte integrante dele. O ser não é uma essência fixa ou determinada, mas uma dinâmica complexa de comportamentos e interações entre os outros seres. A diferença tem um papel fundamental na fundamentação e sustentação do ser. Em vez de buscar uma fundação dada ou teleológica, Deleuze propõe uma perspectiva aberta e material, que reconhece a complexidade e a fluidez.

De acordo com Deleuze, a representação não é capaz de tomar contato com a diferença, pois ela tem apenas um centro e uma perspectiva única. A representação mediatiza tudo, mas não é capaz de mobilizar ou mover nada. Já o movimento implica em uma pluralidade de centros, numa superposição de perspectivas e numa interconexão de pontos de vista, o que deforma a representação. 

Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. São Paulo: Graal, 2009.
MACHADO, Roberto. Deleuze, a Arte e a Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
ROLNIK, Suely. O mal-estar na diferença. Anuário Brasileiro de Psicanálise. Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 1995.

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