Doença mental, loucura e normalização

Cena do filme "Coringa", de 2019.

A psiquiatria moderna desenvolveu sua prática partindo do suposto conhecimento objetivo sobre a loucura, muitas vezes ignorando a língua própria do "louco", entendendo que não possui fundamento ou valor. A especialização do saber sobre a loucura se tornou uma forma de poder sobre o louco, concebendo a doença mental como resultante de um processo orgânico, que se forma no interior do organismo da pessoa, seja por uma lesão anatômica ou distúrbio fisiológico.

Outra tendência da psiquiatria moderna sobre da doença mental entende esta como uma forma de "desorganização da personalidade" do indivíduo, uma alteração de suas estruturas ou um desvio em seu desenvolvimento, se opondo a uma noção de "normalidade" esperada socialmente. Essa perspectiva supõe a existência de uma personalidade "normal" e "adequada", entendendo a doença mental como um desvio dessa conduta.

Essas duas perspectivas teóricas pressupõem uma noção objetiva sobre o que seja saúde, e a partir dessa são avaliados os "desvios" e as "doenças". Na primeira, essa norma estaria relacionada a um funcionamento adequado do organismo fisiológico, na segunda seria uma adequação do indivíduo a um modo de vida "adequado". As duas cometem o mesmo erro de definirem a noção de "normal" como algo dado a priori, sendo que é meramente relacional.

"Neste sentido, é teoricamente impossível, definir a loucura em si mesma, como um fato isolado. Para se definir uma pessoa como louca, seria preciso, de antemão, definir o que seria a maneira “normal” de ser. A loucura seria, portanto, sempre uma contradição à esta norma, oposta à “normalidade”. Por isso algumas pessoas relacionam a loucura com definições inferiorizantes com relação ao “normal” e “estabelecido”. (...). Simplesmente não há critérios precisos no campo da saúde mental que permitam definir o que seja normalidade psíquica."
(Ieda Porchat, em 'O que é psicoterapia')

Em ‘O Normal e o Patológico’, o filósofo e médico francês Georges Canguilhem (1904-1995) entende que é próprio à doença, orgânica ou psíquica, interromper o curso de algo. Portanto, o indivíduo "doente" é sempre doente em relação a algo, seja aos outros ou a si mesmo. Isso significa que a noção de "doença" depende das relações que se estabelece consigo mesmo e com os outros, que é próprio da loucura ser rebelde e contrário a uma normativa.

Se a loucura está relacionada a um comportamento contrário a uma norma, podemos nos perguntar o que é essa norma, ou ser "normal"? A palavra latina "norma" significa “esquadro”, está relacionada àquilo que não se inclina nem para a direita, nem para a esquerda, que é reto, e que se mantém num justo meio-termo, é aquilo que serve para endireitar uma pessoa. Normalizar é “endireitar” a existência que está “irregular”.

"A antropologia cultural, estudando diferentes culturas e sociedades, forneceu dados riquíssimos sobre o comportamento humano. Mostrou que muito do que sentimos, pensamos e da forma como agimos se deve ao que aprendemos na cultura em que vivemos. E, geralmente, tomamos como universal, como verdade absoluta, aquilo que é vigente em nossa cultura. A antropologia mostrou, pois, que, em termos de comportamento humano, não há verdade absoluta. A verdade difere nas diferentes culturas. É normal aqui, é patológico lá. É patológico aqui, é normal, aceito e respeitado acolá."
(Ieda Porchat, em 'O que é psicoterapia')

O louco, entendido como "anormal", seria contrário a uma ideia específica de "norma", no sentido de irregular. Assim, a norma teria o intuito de evitar e desencorajar sua infração, servindo unicamente aos "normais", por não saberem lidar bem com aqueles que são estranhos à "norma". O "louco" ou "anormal" é apenas uma oposição ao estabelecido por "normal" por um grupo social, num período histórico. O problema é que essa definição acaba sendo tratada como fisiológica e universal.

Portanto, a conceituação do que seja “normal” ou “anormal”, “saúde” ou “doença”, parte sempre de uma realidade e da experiência coletiva, de uma normativa social específica. É numa cultura e uma sociedade específica que se definem as noções de "normalidade" ou "anormalidade", que servem para preservar o grupo e sua constância. Por isso, o que é normal numa sociedade pode ser considerado patológico em outra, e vice-versa.

“A doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal.”
(Michel Foucault, em ‘Doença mental e psicologia’)


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referêcias:
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 2000.
FRAYZE-PEREIRA, João. O que é Loucura. São Paulo: Brasiliense, 2002.
PORCHAT, Ieda. O que é Psicoterapia. São Paulo: Brasiliense, 1989.