O normal e o patológico - Georges Canguilhem

O livro 'O normal e o patológico' é resultado de uma tese de doutorado em medicina de Georges Canguilhem, filósofo e médico francês, que aborda sobre a dificuldade em estabelecer os conceitos e distinções entre o normal e o patológico na medicina.

Neste trabalho, Canguilhem (1904-1995) traçou um olhar filosófico sobre alguns dos fundamentos e métodos da medicina, problematizando especificamente a terapêutica enquanto uma instauração e restauração do "normal". Trata-se de uma investigação sobre a produção do conhecimento científico na medicina a respeito do normal e do patológico, e uma análise de sua cientificidade.

Alguns trechos:

A filosofia é uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha serve, ou diríamos mesmo para a qual só serve a matéria que lhe for estranha.

Esperávamos da medicina justamente uma introdução a problemas humanos concretos. A medicina nos pareceria, e nos parece ainda, uma técnica ou arte situada na confluência de várias ciências, mais do que uma ciência propriamente dita.

Aplicando à medicina um espírito que gostaríamos de chamar "sem preconceitos", pareceu-nos que, apesar de tantos esforços louváveis para introduzir métodos de racionalização científica, o essencial dessa ciência ainda era a clínica e a terapêutica, isto é, uma técnica de instauração e de restauração do normal, que não pode ser inteiramente reduzida ao simples conhecimento.

O presente trabalho é, portanto, um esforço para integrar à especulação filosófica alguns dos métodos e das conquistas da medicina.

A doença não é somente desequilíbrio ou desarmonia; ela é também, e talvez sobretudo, o esforço que a natureza exerce no homem para obter um novo equilíbrio. A doença é uma reação generalizada com intenção de cura. O organismo desenvolve uma doença para se curar. A terapêutica deve, em primeiro lugar, tolerar e, se necessário, até reforçar essas reações hedônicas e terapêuticas espontâneas.

A doença difere da saúde, o patológico, do normal, como uma qualidade difere de outra, quer pela presença ou ausência de um princípio definido, quer pela re-estruturação da totalidade orgânica. Essa heterogeneidade dos estados normal e patológico ainda é compreensível na concepção naturista que pouco espera da intervenção humana para a restauração do normal. A natureza encontraria os meios para a cura. Contudo, em uma concepção que admite e espera que o homem possa forçar a natureza e dobrá-la a seus desejos normativos, a alteração qualitativa que separa o normal do patológico era dificilmente sustentável.

A convicção de poder restaurar cientificamente o normal é tal que acaba por anular o patológico. A doença deixa de ser objeto de angústia para o homem são, e torna-se objeto de estudo para o teórico da saúde.

A identidade real dos fenômenos vitais normais e patológicos, aparentemente tão diferentes e aos quais a experiência humana atribuiu valores opostos, tornou-se, durante o século XIX, uma espécie de dogma, cientificamente garantido, cuja extensão no campo da filosofia e da psicologia parecia determinada pela autoridade que os biólogos e os médicos lhe reconheciam.

A identidade do normal e do patológico é afirmada em proveito do conhecimento do normal. No pensamento de Claude Bernard, o interesse dirige-se do normal para o patológico, com a finalidade de uma ação racional sobre o patológico.

A história das idéias não pode ser necessariamente superposta à história das ciências. Porém, já que os cientistas, como homens, vivem sua vida em um ambiente e em um meio que não são exclusivamente científicos, a história das ciências não pode negligenciar a história das idéias.

Broussais mostra que os fenômenos da doença coincidem essencialmente com os fenômenos da saúde, da qual só diferem pela intensidade.

É em relação a uma medida considerada válida e desejável — e, portanto, em relação a uma norma — que há excesso ou falta. Definir o anormal por meio do que é de mais ou de menos é reconhecer o caráter normativo do estado dito normal. Esse estado normal ou fisiológico deixa de ser apenas uma disposição detectável e explicável como um fato, para ser a manifestação do apego a algum valor.

A idéia da continuidade entre o normal e o patológico está, ela própria, em continuidade com a idéia da continuidade entre a vida e a morte, entre a matéria orgânica e a matéria inerte.

E o problema é o seguinte: o conceito de doença será o conceito de uma realidade objetiva acessível ao conhecimento científico quantitativo? A diferença de valor que o ser vivo estabelece entre sua vida normal e sua vida patológica seria uma aparência ilusória que o cientista deveria negar?

Se afirmo a homogeneidade de dois objetos sou obrigado a definir ao menos a natureza de um dos dois, ou então alguma natureza comum a um e a outro. Mas, se afirmo a continuidade, posso apenas intercalar entre extremos, sem reduzi-los um ao outro, todos os intermediários cujas disposição obtenho pela dicotomia de intervalos progressivamente reduzidos. Isso é tão verdadeiro que certos autores tomam como pretexto a continuidade entre a saúde e a doença para se recusarem a definir tanto uma como a outra. Segundo eles, não existe estado normal completo, nem saúde perfeita.

Raciocinando com todo o rigor, uma norma não existe, apenas desempenha seu papel que é de desvalorizar a existência para permitir a correção dessa mesma existência. Dizer que a saúde perfeita não existe é apenas dizer que o conceito de saúde não é o de uma existência, mas sim o de uma norma cuja função e cujo valor é relacionar essa norma com a existência a fim de provocar a modificação desta. Isso não significa que saúde seja um conceito vazio.

Se considerarmos, portanto, o mecanismo renal da secreção urinária través dos seus resultados — efeitos fisiológicos ou sintomas mórbidos —, a doença consiste no aparecimento de uma nova qualidade; se considerarmos o mecanismo em si mesmo, a doença é somente variação quantitativa.

Estamos, portanto, diante de um fenômeno patológico que poderemos definir pela qualidade ou pela quantidade, conforme o ponto de vista em que nos colocarmos, conforme considerarmos o fenômeno vital em sua expressão ou em seu mecanismo.

Uma função poderia ser chamada de normal enquanto fosse independente dos efeitos que produz. O estômago é normal enquanto digere sem se digerir.

Pode-se negar que a doença seja uma espécie de violação do organismo, considerá-la como um evento resultante da ação das funções permanentes do organismo, sem negar que essa ação seja nova. Um comportamento do organismo pode estar em continuidade com os comportamentos anteriores, e ser, ao mesmo tempo, um comportamento diferente. A progressividade de um advento não exclui a originalidade de um evento. Um sintoma patológico pode traduzir isoladamente a hiperatividade de uma função cujo produto é rigorosamente idêntico ao produto das mesmas funções nas condições ditas normais, mas isso não quer dizer que o mal orgânico, considerado como outro modo de ser da totalidade funcional, e não como uma soma de sintomas, não seja para o organismo uma nova forma de se comportar em relação ao meio.

Talvez seja por isso que até hoje a patologia levou tão pouco em consideração essa característica da doença: de ser realmente para o doente uma forma diferente da vida.

Parece-nos de importância capital que um médico reconheça na dor um fenômeno de reação total que só tem sentido, e que só é um sentido, no nível da individualidade humana concreta.

A doença está na origem da atenção especulativa que a vida dedica à vida, por intermédio do homem. Se a saúde é a vida no silêncio dos órgãos, não há propriamente ciência da saúde. A saúde é a inocência orgânica. E deve ser perdida, como toda inocência, para que o conhecimento seja possível.

Portanto, salvo pelas dificuldades levantadas pelo problema geral da compreensão do outro, a psicopatologia constitui uma fonte de documentos utilizáveis em psicologia geral, uma fonte de luz a ser projetada sobre a consciência normal.

Como não existem fatos psíquicos elementares separáveis, não se podem comparar os sintomas patológicos com elementos da consciência normal, porque um sintoma só tem sentido patológico no seu contexto clínico que exprime uma perturbação global.

E. Minkowski pensa também que o fato da alienação não pode ser reduzido unicamente a um fato de doença, determinado por sua referência a uma imagem ou a uma idéia precisa do homem médio ou normal. O alienado "não se enquadra" não tanto em relação aos outros homens, mas em relação à própria vida; não é tanto desviado, mas sobretudo diferente.

Em última análise, são os doentes que geralmente julgam — de pontos de vista muito variados — se não são mais normais ou se voltaram a sê-lo. Para um homem que imagina seu futuro quase sempre a partir de sua experiência passada, voltar a ser normal significa retomar uma atividade interrompida, ou pelo menos uma atividade considerada equivalente, segundo os gostos individuais ou os valores sociais do meio.

De qualquer modo, o médico clínico, em geral, limita-se a entrar em acordo com seus clientes para definir o normal e o anormal, segundo as normas individuais dos próprios clientes.

Mais do que a opinião dos médicos, é a apreciação dos pacientes e das idéias dominantes do meio social que determina o que se chama 'doença'.

O que se encontra de comum aos diversos significados dados, hoje em dia ou antigamente, ao conceito de doença é o fato de serem um julgamento de valor virtual.

Teoricamente, curar é fazer voltar à norma uma função ou um organismo que dela se tinham afastado. O médico geralmente tira a norma de seu conhecimento da fisiologia, dita ciência do homem normal, de sua experiência vivida das funções orgânicas, e da representação comum da norma em um meio social em dado momento.


Referência:
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Trad.: Mana Thereza Redig de Carvalho Barrocas. 6. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.