Não há fatos, apenas interpretações


O que Nietzsche quis dizer com "Não há fatos, apenas interpretações"? Muitos são aqueles que criticam essa sentença, defendendo os fatos como inquestionáveis, criticando e classificando esta ideia como absurda e sem sentido, enquanto outros a enaltecem enquanto característica da filosofia pós-moderna.

Em ambos os casos, a própria frase gera diferentes interpretações e posicionamentos, portanto podemos começar seu entendimento partindo dela mesma, do modo como ela é interpretada, pois essa mesma citação não é um fato, que possui um entendimento igual para todos, mas sim entendida por meio de diversas interpretações.

Para entendê-la, penso ser importante conhecer um pouco a respeito da filosofia nietzschiana, em especial o modo como esse pensador entende o conhecimento e a verdade. Para Nietzsche, a verdade e o conhecimento não correspondem a algo único, acabado ou absoluto, mas sim como elementos determinados por interesses e perspectivas distintas.
"Para Nietzsche, todo conhecimento é inevitavelmente guiado por interesses e condicionamentos subjetivos, ideológicos; o conhecimento resulta da projeção de nossos impulsos e anseios, razão pela qual Nietzsche considera sempre determinado por certa perspectiva, seja individual, seja sócio culturalmente determinada."
(Oswaldo Giacoia, em 'Nietzsche', 2000)
Granier (2009) apresenta como características da filosofia nietzschiana o perspectivismo e o pluralismo. Nesse sentido, um fato nunca é entendido como algo independente da perspectiva de quem o observa, ou seja, os fatos são sempre observados e interpretados por um viés e por valores específicos. Deste modo, coexistem diferentes interpretações e pontos de vista sobre um mesmo fato.

De acordo com Giacoia (2006), o perspectivismo entende que todo conhecimento depende sempre de condicionamentos subjetivos, históricos, sociais, econômicos, culturais e psicológicos, que determinam a valoração e implicam uma perspectiva específica, de modo que não há conhecimento absoluto, neutro ou objetivo.

O pluralismo corresponde às tendências filosóficas que constatam a coexistência de variados princípios que constituem as coisas e a realidade, tendendo assim a acolher os diferentes pontos de vista, distintas formas de valoração, experiências culturais, convicções ou visões de mundo.
"O pluralismo Nietzschiano é uma determinação primordial da realidade, (...). Não existe conhecimento a não ser interpretativo, e não existe interpretação a não ser no plural."
(Jean Granier, em 'Nietzsche', 2009)
Harari (2015) comenta que até a década de 1940 não havia um crime de "estupro da esposa", pois a mulher era entendida como um "objeto" que pertencia ao homem: ao pai, ao irmão ou ao marido. Seu "uso" era um direito desses homens. Hoje entendemos essa antiga prática como absurda e abusiva, portanto o entendimento sobre as relações sexuais e o respeito ao corpo se transformou de acordo com a época e contexto.

Agora, analisemos outra frase de Nietzsche: "não há fatos, apenas interpretações". Ele não está proferindo uma verdade absoluta com essa frase, pois não é essa a intenção de sua filosofia. Além disso, podemos aplicar essa sentença a ela mesma, de modo que a própria frase se apresenta como uma interpretação, e não como uma verdade.

Em sua frase, o próprio filósofo se coloca neste sentido, ou seja, ele não apresenta a sua filosofia como uma verdade absoluta, mas como uma possibilidade, um caminho. Examinemos, então, essa frase contextualizada em seu fragmento póstumo:
"Contra o positivismo, que permanece no fenômeno: ‘só há fatos’, diria eu: não, justamente não há fatos, apenas interpretações."
(Friedrich Nietzsche, KSA XII, 7 [60])
Positivismo é uma tendência de filosofia que se mantêm apenas nos fatos enquanto observáveis e mensuráveis. Mas, para Nietzsche, um fato nunca é observado apenas enquanto fato, por ser sempre interpretado e valorado. Não é possível entender as coisas "em si". Enquanto o positivismo se detêm aos fatos, o filósofo vai declarar que o entendimento de um fato é resultante de uma interpretação.

Portanto, entende-se que não há um significado já dado sobre os fatos, pois estes serão sempre interpretado por alguma pessoa, de acordo com um contexto, situação, tempo e condição específica. O modo como um objeto ou uma situação é entendida é muito amplo e complexo, pois depende de um conjunto de signos e atribuições de significados sobre o fato em questão.

Seu entendimento apresenta que os fatos são sempre tomados por uma perspectiva específica, e esse entendimento propõe um inacabamento à filosofia, pois todo entendimento e interpretação se dá, inevitavelmente, dependendo de um momento histórico, de condições, interesses, situações e circunstâncias específicas, tal como comenta em 'Humano, demasiado humano':
"Falta de sentido histórico é o defeito hereditário de todos os filósofos (...) Não querem aprender que o homem veio a ser, e que mesmo a faculdade de cognição veio a ser (...) tudo veio a ser; não existem fatos eternos: assim como não existem verdades absolutas."
(Friedrich Nietzsche, em 'Humano, demasiado humano', aforismo 2)
O conhecimento e a verdade não correspondem a algo dado, mas criado, inventado e recheado de interpretações. Apesar de conhecermos o mundo de um modo, ele pode ser sempre interpretado de outro modo, pois não há um sentido por detrás das coisas, mas inúmeros sentidos e perspectivas possíveis.

Como crítico da metafísica, Nietzsche entende que o conhecimento e a verdade não correspondem a algo dado, a um fato. A verdade, para o filósofo, é algo criado, inventado e recheado de interpretações. O mundo e as coisas podem sempre ser interpretados de outro modo, pois não há um sentido por detrás das coisas, mas inúmeros sentidos e perspectivas possíveis.

Nosso conhecimento de mundo está sempre relacionado aos nossos impulsos e intenções, por isso mesmo Nietzsche coloca em questão a vontade de verdade, entendendo que interpretamos o mundo a partir de nossos impulsos e necessidades diversas, onde cada impulso opera com um desejo de domínio, buscando impor sua perspectiva como norma sobre os outros, onde não há verdades absolutas.
"Para ele [Nietzsche], o conhecimento não passa de uma interpretação, de uma atribuição de sentidos, sem jamais ser uma explicação da realidade. Ora, o conferir sentidos é, também, o conferir valores, ou seja, os sentidos são atribuídos a partir de uma determinada escala de valores que se quer promover."
(Aranha; Martins, em 'Filosofando', 1993)


Referências:
ARANHA; MARTINS. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 1993.
GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.
GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea. São Paulo: Publifolha, 2006.
GRANIER, Jean. Nietzsche. Porto Alegre: L&PM, 2009.
HARARI, Yuval. Sapiens - uma breve história da humanidade. Porto Alegre, RS: L&PM, 2015.
NIETZSCHE, Friedrich. Humano, Demasiado Humano. Companhia das Letras, 2005.
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