Inteligência artificial e o declínio humano


Não há como negar que a inteligência artificial está por toda parte. Ela organiza nossa rotina, escreve nossos textos, compõe nossas músicas, oferece respostas rápidas e dá até conselhos emocionais, mesmo sendo um “ser” sem emoção (o que é bastante contraditório). Com isso dito, fico me perguntando: do que, exatamente, estamos abrindo mão?

A ilusão da saúde mental

Antes de iniciar meu solilóquio, fico pensando, antes de tudo, no próprio conceito de saúde dado pela OMG. Ela define saúde como um “estado de completo bem-estar físico, mental e social”, mas aí eu te pergunto: quanto tempo precisa durar este estado para ser considerado saudável? Um dia? Uma semana? Com o mundo da forma como está, quem diabos está com este “completo bem estar”, diante de tanta bizarrice?

Puxando agora para a questão da saúde mental, antes mesmo das IAs mais conhecidas aparecerem (chatGPT, por exemplo), já havia uma série de aplicativos que prometem ajudar nesta área: meditações guiadas, diários emocionais, frases motivacionais… Tudo muito fácil, simples, resolutivo. A única coisa que foi esquecida é que a saúde mental não é nada simples e muito menos universal.

Saúde mental é uma construção que envolve história de vida, contexto social, relações interpessoais, cultura, corpo, tempo. Não é nada dicotômico, seguindo a lógica de 8 ou 80 ou de “isto ou aquilo”, como bem colocou Cecília Meireles no seu poema. Não pode ser reduzida a uma notificação diária de autocuidado ou a exercícios de respiração.

Ainda que alguns apps e IAs possam nos ajudar a nos orientar em algum grau na nossa própria lógica de “autocuidado” (coloco entre aspas porque tenho certa ressalva com essa palavra), nada disso substitui o encontro humano.

Isso sem falar, ainda, em toda a lógica da privacidade - quanto mais informações são postas na rede, mais abrimos mão dela. Tudo isso ainda podendo ser usado como moeda de troca por cliques, anúncios que, no fim das contas, nos fazem criar competições imaginárias com as outras pessoas e nos colocar em rankings de produtividade que jogam contra nossa saúde mental. Contraditório mais uma vez, não é mesmo?

IA como barreira contra a angústia

Um uso que tem se tornado muito comum da IA é o de “ouvir” seus conselhos. Pessoas que recorrem ao “Gepeto” para pedir ajuda em relacionamentos, mudanças de vida e crises existenciais. Para uma tecnologia que não lida com nada disso, as respostas podem ser muito seguras, confiantes e claras. O que nos acalenta de alguma forma, já que o existir humano não tem nada disso.

E talvez aí é que esteja o (ou um dos) problemas.

A vida não é clara e exige escolhas difíceis, caminhos incertos, erros desastrosos. Isso traz à tona o quanto a angústia frente o duvidoso traz sofrimento. Existir é isso mesmo: angustiar-se e responsabilizar-se. Assumir os acertos mas também os erros daquilo que você decidiu por si só e que não tem a quem culpar.

Recorrer inevitavelmente às respostas de outras pessoas ou mesmo às Inteligências Artificiais é uma forma de evitar o incômodo. Seria ótimo se isso não nos tornasse, na mesma medida, mais frágeis frente à instabilidade da vida real.

Não é à toa que é possível ver ainda pessoas buscando um conforto afetivo nessas IAs. O filme Her não é mais algo impensável: mas cada vez mais possível - e próximo - da nossa realidade.

Mas será que é possível nos apaixonamos por uma inteligência virtual? E se for, o que isso nos revela sobre o modo como estamos nos relacionando? Não é apenas a tecnologia que está em jogo, mas o profundo vazio de conexões humanas. Uma tentativa desesperada de encontrar alívio sem os riscos que envolvem um vínculo real.

A IA como morte neuronal

As IAs no campo das atividades criativas também tem se tornado um espaço perigoso. Resume livros, cria imagens, gera roteiros.. Tudo isso é útil se apenas a utilidade estivesse em jogo e não, também, a experiência.

Criar é entrar em contato com o tédio, com a dúvida, com o impensável e com a lentidão - o que tem se tornado cada vez mais raro. Se antes demoravamos meses para se comunicar com outras pessoas por meio de cartas, hoje não conseguimos esperar mais 30 segundos sem resposta. Não utilizamos o elevador sem ocupar nosso tempo livre com vídeos inúteis de gatos montando cachorros (não me entenda mal: eu amo gatos e cachorros e inclusive moro com 3).

Não sabemos lidar mais com a falta de estímulos. A pressa virou o padrão e o que exige energia e tempo já é visto como algo a ser repelido. A IA nos poupa desses processos e, ao fazer isso, nos poupa do real existir.

O que me faz pensar que essa economia de energia mental tem um preço. Quando deixamos de pensar criticamente, de interpretar, de criar, colocamos nosso cérebro no automático - e cérebros que não se movimentam adoecem. Algumas doenças inclusive são marcadas justamente pela morte progressiva de neurônios por falta de estímulos. O que será que estamos estimulando - ou deixando de - quando deixamos que as IAs façam todo o serviço?

Tantas informações para serem pensadas e analisadas, não é mesmo? E nem falamos ainda sobre o papel da IA na reformulação da educação - mas isso fica para outro dia.

“Então, Gabriela, você é contra a IA e as tecnologias?”

De forma alguma. Pode ser uma ferramenta super útil, se usada com cautela e consciência. Só que é preciso se perguntar: ela está apenas me oferendo algumas coisas ou também está tirando algo de mim?

Substituir o que é humano por ser até eficiente em algum grau. A questão é que talvez a vida não peça eficiência, e sim presença.

E isso, nenhuma máquina pode viver por nós.
Postagem Anterior Próxima Postagem