Inexistir






Quando o vento passa em um quintal, quase sem ser percebido, muda as coisas do lugar. Assim, a tecnologia avança como um vento sobre a existência, remodelando silenciosamente a forma de viver, pensar e até sentir. Nos últimos anos, o que começou como luxo ou entretenimento (smartphones, aplicativos de transporte, deliverys, redes sociais, eletrodomésticos inteligentes e agora as inteligências artificiais), tornou-se algo indispensável. Essas “coisas”, hoje se posicionam no centro da experiência humana, ocupando o lugar do essencial quase sem resistência.

As tecnologias, por conveniência, tomaram o lugar de algo fundamental, até se tornarem próteses invisíveis do nosso corpo e mente. Com a justificativa de velocidade e praticidade a vida se reconfigura em função da performance do trabalho, da lógica do acúmulo sem finalidade, da comunicação inflada, incessante, muitas vezes vazia, que parece girar em torno do ato de comunicar por comunicar, como se o conteúdo fosse irrelevante diante da obrigação de estar sempre "conectado".

Se consome inovações sem questionamento algum, sem notar que, ao fazer isso, se aceita também uma nova forma de existir. A informatização das coisas pode ser, na verdade, a informatização das pessoas, fazendo com que aquilo que outrora era feito pelo homem, hoje pode ser uma tarefa que não o pertence mais. E talvez o mais inquietante disso não seja o fato do homem estar sendo transformado, mas de não ter parado e perguntado “por quê?” ou “para onde?”.

As tecnologias ocuparam o lugar daquilo que antes era humano. O ato simples de caminhar, cozinhar ou calcular foi transformado em função terceirizada, gerenciada por dispositivos que prometem eficiência enquanto esvaziam a experiência. O corpo já não caminha, ele é levado, o paladar já não experimenta, ele consome, a mente já não calcula, ela delega. Tudo o que antes era gesto criador virou tarefa automatizada, desempenho. Substitui a criação pela performance, a experiência pela entrega rápida, e se orgulha de uma autonomia que parece fazer com que algo importante fique em desuso.


O filósofo Byung Chul Han no seu livro “A crise na narração”, ao citar Walter Benjamin, fala sobre a “atrofia da experiência". Comparando a vida a um músculo, diz que o indivíduo moderno vive uma atrofia muscular, uma atrofia do tempo. Han usa dessas expressões para falar sobre o empobrecimento da experiência sensível e da vivência do tempo.


‘Uma atrofia muscular aflige a vida na modernidade. Ela é ameaçada pela desintegração do tempo.’



O autor usa esses conceitos como críticas à modernidade. A atrofia muscular refere-se ao homem que terceiriza sua existência, suas possíveis experiências, a tecnologia. A atrofia do tempo refere-se a perda da continuidade das vivências, sendo assim a vida uma aglomeração de presentes superficiais.

A metáfora do músculo atrofiado é sensacional, pois fala de algo essencial que não está sendo usado. Essa atrofia é perceptível em várias situações na modernidade, inclusive no brincar. Atividade esta, que é a maior expressão da qualidade criadora que todo indivíduo possui, mas que vem sendo prejudicado por inovações.

Parte fundamental do brincar é a criação, o processo de inventar é que gera a expectativa, que mais tarde no brincar encontra o prazer da diversão. Hoje parte desse processo é anulado por brinquedos prontos, bonecos(as) fabricados, video games criados entre outras produtos que não permitem a criação.

No Livro Momo de Michael End, a personagem principal em certo momento da história tem em mãos uma boneca que fala, porém não encontrou prazer na brincadeira visto que a boneca repetia a mesma fala e nada mais.

“momo tentou outra brincadeira. Vendo que também não dava certo, experimentou outra(....), mas nada dava certo. Se pelo menos a boneca não falasse nada, Momo poderia responder por ela, e a conversa seria ótima. Porém, pelo próprio fato de falar, Bibigirl impedia qualquer conversa.(...)daqui a pouco Momo começou a ter uma sensação que nunca tivera antes. Como era novidade, levou algum tempo para ela perceber que trata de tédio”


O brincar é primitivo, pertence à natureza humana, mas foi modificado drasticamente por inovações recentes. O Brincar se faz em um processo, que passa pela criação da brincadeira, momento em que habilidades motoras e cognitivas trabalham juntas, onde a expectativa do brincar gera emoções que se misturam com a atividade. Com a brincadeira pronta , grande parte do brincar foi tirada da criança e as chances de se entediar com aquilo que ela não faz parte é grande. Por isso, esses produtos têm a necessidade de ter novidades constantemente.

Em paralelo ao fato das crianças na modernidade estarem perdendo parte fundamental do brincar, o índice de ansiedade cresce entre elas. Aliás não só na infância mas os altos índices de ansiedade, depressão, burnout está em constante crescimento em todas as faixas etárias. Há vários motivos sociais, culturais que justificam este crescimento, mas uma coisa é fato, existir não é como antes, hoje não se experimenta a vida por inteiro.

O indivíduo não caminha, não cozinha, não escreve, não lê, não brinca. E por isso não acessa o tempo “ocioso” que faz parte do processo dessas coisas, tempo valioso para pensar sobre si, para notar e participar do mundo a sua volta, em um mutualismo. A atrofia muscular da vida é angustiante para o indivíduo, hoje se carece daquilo que é natural, que foi substituído por produtos prontos.

Até que ponto isso é avanço? Até que ponto abrir um aplicativo é melhor do que abrir uma janela. Aos poucos, vamos desaprendendo o mundo, já não se sabe descascar uma fruta, nem sustentar um silêncio ou brincar. A vida foi substituída por uma simulação vendida em parcelas, eficiente e vazia. Desaprendemos a viver para nos tornarmos funcionais. Diante disso muitas questões podem ser levantadas, dentre elas: e se o colapso emocional em massa não for uma falha do sistema, mas sim do seu funcionamento aperfeiçoado, atualizado, perfeito? Será que a sociedade está cada vez mais distante de saber o que de fato é essencial? As pessoas sabem caminhar sem destino, cozinhar sem pressa, brincar sem utilidade?
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