Atualmente, moro na casa dos meus sogros. Minha sogra sempre foi muito atenciosa com a casa, até ser acometida por uma doença. Lavava as vasilhas utilizando um método meticuloso, que consistia em deixá-las de molho com água e sabão e, depois, esquentar água para lavá-las novamente.
No domingo pela manhã, enquanto eu lavava as vasilhas — esquentando a água —, pensei no apreço de minha sogra por coisas que agora parecem desimportantes. O cuidado com a casa e com seus utensílios já não faz mais sentido algum.
Meu pensamento primário foi dar a mesma desimportância. De que vale gastar tanto com as coisas? No fim da vida, ou diante de um adoecimento, as coisas seguem sendo apenas coisas.
Mas outro pensamento me ocorreu.
Lembro de quando conversei com um paciente, comentando sobre um amigo que achava cafona gastar dinheiro com roupa.
Eu adoro comprar roupa. Levantei a hipótese de que esse meu amigo jamais soube a alegria de comprar uma peça.
Meu paciente — gênio — discordou. (Na terapia que eu proponho, minha fala não é absoluta.)
Meu paciente trouxe (sem saber) a ideia de valoração de Nietzsche. Se, para meu amigo, comprar roupa não é importante, ele não será alegre fazendo isso — nem sofrerá a perda de algo que não lhe interessa.
Concordei com meu paciente e comigo mesma. Talvez meu amigo não sinta falta.
Mas eu continuo sentindo alegria. Uma alegria que ele não sente.
Hoje, adiciono um novo olhar (meu):
Se a gente olhar as coisas com desimportância, a vida não perde o sentido?
Não estou discordando do mestre Manoel de Barros:
"A poesia está guardada nas palavras – é tudo que eu sei.Meu fado é o de não saber quase tudo.Sobre o nada eu tenho profundidades.Não tenho conexões com a realidade.Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.Para mim, poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.Fiquei emocionado.Sou fraco para elogios."
Nossas insignificâncias nos salvam. Não tenho dúvidas.
Mas… de que insignificâncias estamos falando?
Entendo que Manoel fala do direito à experimentação da vida,
abandonando o lugar moral que nos coloca melhor ou pior que o outro.
Abandonando, sobretudo, a ideia de poder.
Então, talvez eu também não esteja falando das coisas propriamente,
mas do efeito delas em nós.
“Que a importância de uma coisa não se mede com fita métrica nem com balanças nem barômetros etc.Que a importância de uma coisa há que ser medida pelo encantamento que a coisa produza em nós.”
Qualquer coisa pode ser cafona, mas também pode, ao mesmo tempo, alegrar a vida.
Será que minha sogra perdeu o tempo dela se importando com a casa (e as coisas)?
Ou será que ganhou alegria?
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Minha alegria em comprar e vestir roupas merece avaliação, julgamento, extinção?
Deve ser interpretada como falta?
Algo de que lanço mão para tamponar algo originário, constituinte?
Será que todo excesso esconde uma falta?
E aí veio a velha questão que muitos levantam diante de qualquer prazer declarado: equilíbrio.
Só consegui equilíbrio naquilo que pouco me importa. Logo, não foi equilíbrio o que alcancei.
Equilíbrio me parece falta de paixão.
O que é equilíbrio? Quanto de cada coisa configura equilíbrio?
O que significa “um pouco de cada”? Como se alcança esse tal equilíbrio?
Não saberia dizer — e nem me gasto com isso.
Mas percebi que existem outras alegrias também.
E percebi que, com frequência, uma alegria pode gerar tristeza ou se transformar nela.
Comprar já foi tristeza para mim.
Num primeiro momento, porque me foi dito que era errado — e eu acreditei.
Me sentia o tal ser faltante.
Por sorte, Nietzsche me salvou dessa tristeza.
Entretanto, outra apareceu: comprar roupa estava me impedindo de fazer outras coisas que também me interessavam.
Existem em mim outros interesses.
Hoje, outra alegria me alcança: é a primeira vez que vejo meu cartão não ter mais parcelas de roupa.
Desde que tive um cartão, ele sempre se ocupou de roupas.
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Este texto nem era para falar sobre roupa.
Era para pensar sobre o direito de ter apreço pelas coisas, mesmo que um dia deixemos de tê-las.
O direito de abandonar o niilismo passivo e chegar à criação de sentido.
A permissão para ver sentido na vida sem necessariamente pensar na morte.
Olhar para a vida tal qual o eterno retorno: dando valor ao que te faz feliz, enquanto te faz feliz —
e percebendo que o que te faz feliz… muda.
Talvez eu tenha falado de tudo isso enquanto falava de roupa…
“Cremos poder captar o real, que teria se constituído por si próprio, esquecendo que fomos nós que criamos isto que chamamos de realidade."