História da Psicologia Moderna - Schultz & Schultz

O livro 'História da Psicologia Moderna' descreve o percurso histórico da psicologia e de como se tornou uma ciência no final do século XIX, destacando as precondições anteriores e influências na filosofia e na fisiologia para a constituição deste campo de saber.

Escrito por Duane P. Schultz e Sydney Ellen Schultz, este livro é uma referência entre as publicações sobre a história da psicologia, frequentemente utilizado como referência bibliográfica em cursos de graduação em Psicologia no Brasil.


Alguns trechos:

Já no século V a.C., Platão, Aristóteles e outros sábios gregos se viam às voltas com muitos dos mesmos problemas que hoje ocupam os psicólogos: a memória, a aprendizagem, a motivação, a percepção, a atividade onírica e o comportamento anormal.

As mesmas espécies de interrogações feitas atualmente sobre a natureza humana também o eram séculos atrás, o que demonstra uma continuidade vital entre o passado e o presente em termos de seu objeto de estudo.

O que distingue a disciplina mais antiga da filosofia da psicologia moderna são a abordagem e as técnicas usadas, que denotam a emergência desta última um campo de estudo próprio, essencialmente científico.

Somente quando os pesquisadores passaram a se apoiar na observação e na experimentação cuidadosamente controladas para estudar a mente humana que a psicologia começou a alcançar urna identidade que a distinguia de suas raízes filosóficas.

Boa parte da história da psicologia, depois de sua separação da filosofia, é a história do contínuo aprimoramento de instrumental, técnicas e métodos estudo voltados para alcançar uma precisão e uma objetividade maiores tanto no âmbito das perguntas como no das respostas.

O primeiro indício de um campo distinto de pesquisa conhecido como psicologia manifestou-se no último quarto do século XIX, quando o método científico foi adotado como um recurso para tentar resolver os problemas da psicologia.

Em dezembro de 1879, em Leipzig, Alemanha, Wilhelm Wundt implantou o primeiro laboratório de psicologia do mundo. E, em 1888, a Universidade da Pensilvânia nomeou James McKeen Cattell, um americano que estudara com Wundt, professor de psicologia, a primeira docência em psicologia do mundo. Até então, os psicólogos trabalhavam em departamentos de filosofia.

O psicólogo britânico William McDougall definiu a psicologia, em 1908, como a "ciência do comportamento", ao que parece pela primeira vez. Dessa forma, por volta do começo do século XX, a psicologia americana conseguia a sua independência em relação à filosofia, desenvolvia laboratórios nos quais aplicar os métodos científicos, formava sua própria associação científica e definia-se formalmente como ciência — a ciência do comportamento.

A psicologia não se desenvolveu no vácuo, sujeita apenas a influências interiores. Ela é parte da cultura mais ampla em que funciona, estando portanto exposta a influências externas que moldam a sua natureza e a sua direção de maneiras significativas. Uma compreensão adequada da história da psicologia tem de considerar o contexto em que a disciplina surgiu e se desenvolveu — as forças sociais, econômicas e políticas que caracterizam diferentes épocas e lugares.

Os psicólogos logo perceberam que, se desejassem que um dia seus departamentos acadêmicos, orçamentos e rendas crescessem, teriam de demonstrar aos administradores universitários e aos legisladores que votavam as alocações de recursos a utilidade que a psicologia poderia ter na solução de problemas sociais, educacionais e industriais. Desse modo, com o tempo, os departamentos de psicologia passaram a ser julgados com base no seu valor prático.

Nos primeiros anos da evolução da psicologia como disciplina científica distinta, no último quarto do século XIX, a direção da nova psicologia foi profundamente influenciada por Wilhelm Wundt, que tinha idéias definidas sobre a forma que essa nova ciência — sua nova ciência — deveria tomar. Ele determinou o objeto de estudo, o método de pesquisa, os tópicos a serem estudados e os objetivos da nova ciência. Ele foi, é claro, afetado pelo espírito de sua época e pelo pensamento então vigente na filosofia e na fisiologia. Não obstante, foi Wundt, em seu papel de agente de uma época, que reuniu as várias linhas de pensamento. Mediante a força de sua personalidade e de sua intensa atividade de escrita e pesquisa, ele moldou a nova psicologia.

Na virada do século, coexistiam várias posições sistemáticas ou escolas de pensamento, que eram, essencialmente, definições diferentes da natureza da psicologia.

Durante os mais de cem anos de sua história, ela tem buscado, acolhido e rejeitado diferentes definições, mas nenhum sistema ou ponto de vista individual conseguiu unificar as várias posições. 

No curso da história da psicologia, desenvolveram-se diferentes escolas de pensamento, sendo cada qual um protesto efetivo contra o que a precedia. Toda nova escola usa um modelo mais antigo como base contra a qual se opor e a partir da qual ganhar impulso.

Por volta da metade do século XIX, o longo período da psicologia pré-científica tinha chegado ao fim. Nessa época, o pensamento filosófico europeu estava impregnado por um novo espírito: o positivismo. O termo e a concepção são o trabalho do filósofo francês Auguste Comte, que empreendia um levantamento sistemático de todo o conhecimento, um projeto deveras ambicioso. Para tornar a sua tarefa mais factível, Comte decidira limitar seu trabalho a fatos inquestionáveis, aqueles que tinham sido determinados através dos métodos da ciência. Assim, positivismo se refere a um sistema baseado exclusivamente em fatos objetivamente observáveis e indiscutíveis. Tudo o que tiver natureza especulativa, inferencial ou metafísica é rejeitado como ilusório.

O conhecimento derivado da metafísica e da teologia devia ser rejeitado; só o conhecimento produzido pela ciência era considerado válido.

Os estudiosos adeptos do materialismo acreditavam que todas as coisas podiam ser descritas em termos físicos e compreendidas à luz das propriedades físicas da matéria e da energia. Um terceiro grupo de filósofos, os defensores do empirismo, estava voltado para o modo como a mente adquire conhecimento. Eles alegavam que todo conhecimento é derivado da experiência sensorial. O positivismo, o materialismo e o empirismo iriam converter-se nos fundamentos filosóficos da nova psicologia.

O empirismo estava voltado para o desenvolvimento da mente, para o modo como ela adquire conhecimento. Segundo a concepção empirista, a mente se desenvolve por meio do acúmulo progressivo de experiências sensoriais. Essa idéia se opõe à perspectiva nativista exemplificada por Descartes, que afírma que algumas idéias são inatas.

Com o desenvolvimento do empirismo, os filósofos se afastaram das abordagens anteriores do conhecimento. Embora permanecessem tratando basicamente dos mesmos problemas, a sua abordagem se tomara atomista, mecanicista e positivista.

Recapitulemos as ênfases do empirismo: o papel essencial dos processos da sensação; a análise cia experiência consciente em seus elementos; a síntese de elementos para formar experiências mentais mais complexas por meio do processo da associação; e a concentração nos processos conscientes.

A justificativa teórica de uma ciência natural do homem fora estabelecida. O que era necessário para traduzir a teoria em prática era urna abordagem experimental do objeto de estudo. E isso logo iria desenvolver sob a influência da fisiologia experimental, que forneceu os tipos de experimentação que completaram as bases para a nova psicologia.

Pierre Flourens (1794-1867), professor de história natural do Collége de France, em Paris, destruiu sistematicamente várias partes do cérebro e da medula espinhal e observou as conseqüências, concluindo que o cérebro controla os processos mentais superiores; partes do mesencéfalo controlam os reflexos visuais e auditivos; o cerebelo controla a coordenação, e o bulbo raquidiano controla as batidas do coração, a respiração e outras funções vitais.

No decorrer do século XIX, a estrutura anatômica do sistema nervoso também estava sendo definida. Veio-se a compreender que as fibras nervosas se compunham, na realidade, de estruturas separadas chamadas neurônios, que de alguma maneira se uniam ou entravam em contato em pontos denominados sinapses. Essas descobertas eram compatíveis com uma imagem mecanicista e materialista dos seres humanos. Pensava-se que o sistema nervoso, assim como a mente, era formado por estruturas atomísticas que se combinavam para gerar o produto mais complexo.

Assim, o espírito do mecanismo dominava tanto a fisiologia como a filosofia do século XIX. Em nenhum lugar isso era mais pronunciado do que na Alemanha. Na década de 1840, um grupo de cientistas jovens na casa dos vinte anos, se comprometeram com a seguinte proposição: todos os fenômenos, incluindo os pertinentes à matéria viva, podem ser explicados em termos físicos. Afirmavam que as únicas forças ativas no organismo são as forças físico-químicas comuns. E assim foram encontrados os caminhos para formar o núcleo da fisiologia do século XIX: o materialismo, o mecanicismo, o empirismo, a experimentação e a medição.

Os empiristas britânicos tinham afirmado que a sensação é a única fonte do conhecimento. (...). Os fisiologistas estavam definindo a estrutura e a função dos sentidos. Tinha chegado o momento de fazer experimentos e quantificar esse acesso para a mente, a vivência subjetiva e mentalista da sensação. Havia técnicas para investigar o corpo; a partir de então essas técnicas são desenvolvidas para explorar a mente. A psicologia experimental estava pronta para começar.

Quatro cientistas são responsáveis diretos pelas primeiras aplicações do método experimental ao objeto de estudo da psicologia: Hermann von Helmholtz, Ernst Weber, Gustav Theodor Fechner e Wilhelm Wundt. Os quatro eram alemães, conheciam fisiologia e estavam a par dos impressionantes desenvolvimentos da fisiologia e da ciência havidos na metade do século XIX.

Foi principalmente devido à pesquisa psicofísica de Fechner que Wilhelm Wundt concebeu o plano de sua psicologia experimental. Os métodos de Fechner mostraram ser aplicáveis a uma gama de problemas psicológicos muito mais ampla do que ele poderia imaginar, sendo usados ainda hoje na pesquisa psicológica, com apenas umas poucas modificações. Fechner deu à psicologia aquilo que toda disciplina que deseja ser uma ciência tem de possuir — técnicas de medida precisas.

Wundt, contudo, voltou-se deliberadamente para a fundação de uma nova ciência. Ele estava interessado em promover a psicologia como ciência independente. Vale no entanto repetir que, embora se considere Wundt o fundador da psicologia, ele não foi o seu originador. Essa ciência emergiu, como vimos, de uma longa linha de esforços criativos.


Fonte:
SCHULTZ, Duane; SCHULTZ, Sydney. História da Psicologia Moderna. São Paulo: Cultrix, 1992.