Filosofia como cuidado da alma

Foto por Arjun Adinata, 2021.

Estamos habituados a entender o cuidado com a mente ou com as emoções, na atualidade, enquanto uma atividade da psicologia ou da psiquiatria, porém essas tendências modernas para lidar com tais questões estão muito mais voltadas para o tratamento do que para o cuidado. O tratamento implica numa intervenção sobre os modos de vida, no sentido de direcionar a pessoa para uma maneira de lidar com seus pensamentos e emoções, conforme o que se entende por "normal", "saudável" ou "adequado".

"A ‘psicologia’ é somente uma fina película na superfície do mundo ético no qual o homem moderno busca sua verdade — e a perde."
(Michel Foucault, em 'Doença mental e psicologia')

O cuidado da alma, a partir da filosofia, consiste num procedimento de ocupar-se de si mesmo, de suas questões afetivas, de seus valores, pensamentos e atividades, caminhando para uma ética e uma estética de si. Por sua tendência filosófica, essa prática adquire um aspecto diferenciado à noção de "terapia", no sentido de "tratamento" ou "cura", como utilizado pela psicologia moderna, que acaba visando uma adequação do indivíduo a um "modelo de vida", de "saúde mental" ou de “desenvolvimento” cognitivo e emocional.

Enquanto campo de saberes e práticas, a psicologia se constituiu como ciência independente apenas no final do século XIX. Seus temas de estudo, como o comportamento, a aprendizagem, as emoções e a personalidade e outros, eram abordados pela filosofia, e continuaram sendo depois disso. Em sua busca positivista de objetividade e classificação, a psicologia científica rompeu com a filosofia, entendendo que as especulações nada serviriam para uma ciência que visasse resultados práticos e quantificáveis.

A psicologia se tornou um saber e uma prática legitimada pela ciência, para enunciar "verdades" sobre os indivíduos e atuar sobre as pessoas no nível da subjetividade e da relação das pessoas consigo mesmas e com as outras, utilizando métodos de uma ciência objetiva, que classifica comportamentos e maneiras de lidar com as emoções, estabelecendo os estágios de desenvolvimento psíquico, diferenciando os indivíduos entre saudáveis e doentes mentais a partir de valores morais, interesses econômicos e políticos.

"A Psicologia para mim, hoje, não passa de um ramo da Política. Um ramo ou aliado poderoso que, aliás, vem servindo à manutenção dos sistemas autoritários, fingindo ser uma ciência apolítica e independente."
(Roberto Freire, em 'Soma - uma terapia anarquista’, vol 2)

Diferente da psicologia científica, a filosofia não enuncia verdades, mas questiona as verdades dadas, possibilitando traçar distintas perspectivas sobre a existência, de maneira pouco objetiva e mais aberta. Pensar e utilizar a filosofia como cuidado da alma implica na possibilidade de dedicar-se a questões existenciais não a partir de um "modelo" ou uma "normalidade" a ser alcançada, habilitando uma reflexão sobre os modos de vida para uma livre elaboração ética e estética de si.

Para que isso seja possível, é preciso deixar de lado toda uma noção muito presente em nosso tempo, onde a noção "cuidado" está atrelada a uma série de atividades previamente estabelecidas como "adequadas" e "saudáveis" - atividades físicas, dieta, estabelecimento de horários para o trabalho e para o lazer, separação da vida privada e profissional, entre tantas outras tarefas que nos são apresentadas como regras a serem seguidas para uma vida "saudável".

Essas inúmeras determinações acabam gerando um grande sentimento de culpa, inadequação e inaptidão para aquelas pessoas que não conseguem alcançar. Parece que tais exigências não estejam cuidando das pessoas, mas prioritariamente adoecendo estas, pois não se direcionam para o indivíduo singular, mas para um conjunto de pessoas sem rosto, com intuitos morais e políticos, tal como a psicologia faz por meio de testes e análises - diagnosticar e tratar, onde o tratamento tem uma função de ajustamento.

O cuidado da alma, a partir da filosofia, trata-se de uma prática que não possui um caminho determinado, muito menos um modelo adequado, mas que possibilita tomar contato com o corpo e os afetos em seu enunciar próprio, ao invés de se utilizar dos olhares de uma ciência ou de um saber teorizante sobre os mesmos. Trata-se da possibilidade de experienciar a própria vida - seus movimentos, interesses, afetos e desafetos, sem partir de uma noção de saudável ou doentio previamente definido.

"Não existe uma saúde em si, e todas as tentativas de definir tal coisa fracassaram miseravelmente. Depende do seu objetivo, do seu horizonte, de suas forças, de seus impulsos, seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias de sua alma, determinar o que deve significar saúde também para seu corpo. Assim, há inúmeras saúdes do corpo."
(Friedrich Nietzsche, em 'A Gaia Ciência', aforismo 120)

Não se trata de uma nova terapêutica, mas práticas de cuidado de si que, segundo Michel Foucault, compõem um modo de vida que é constantemente refletida e aperfeiçoada, se utilizando de um conjunto de técnicas que uma pessoa elabora para si para transformar-se. Assim podemos utilizar a filosofia como uma “caixa de ferramentas”, tal como comentou Gilles Deleuze, que não oferece modelos ou respostas sobre como viver, mas que habilita outros olhares e viveres.

Em nosso tempo, as práticas de cuidado foram convertidas num controle sobre o corpo e as emoções, se tornando muito mais práticas de ajustamento e adaptação, em favor de um sujeito produtivo e vigilante de si, que se autoexplora e se autocontrola a todo momento, do que práticas de cuidado de si. Assim, somos constantemente bombardeados para desempenhar uma forma de vida específica, adquirir certos bens e ter uma certa posição no trabalho.

"O sujeito do desempenho, que se julga livre, é na realidade um servo: é um servo absoluto, na medida em que, sem um senhor, explora voluntariamente a si mesmo."
(Byung-Chul Han, em 'Psicopolítica')

A filosofia não oferece modelos ou respostas sobre como viver a vida, ou sobre o que fazer em cada circunstância. Em oposição ao neoliberalismo, à autoajuda e à psicologia, que estabelecem modelos de vida "adequados" e "sadios", a filosofia nos incita a questionar sobre a vida que estamos levando, de modo a rever o que estamos fazendo de nós mesmos. Assim, nos possibilita perguntas e percepções, em favor de uma vida que se cria e recria, para além da moral, do bem e do mal, como escrevia Friedrich Nietzsche.

Uma filosofia que se coloca em favor da vida e não contra ela, que não busca negar ou evitar os momentos ruins e as situações dolorosas, mas que se apropria da vida para fazer algo novo e distinto dela, que entende as dores como um processo e não algo como a ser tratado. Assim, a doença não seria um problema a ser "evitado" ou “reajustado”, mas algo a ser experienciado e superado, como propõe Nietzsche na grande saúde, aquela que se conquista a partir da doença, numa vida para além de saúde e da doença.

"A doença libertou-me lentamente: poupou-me qualquer ruptura, qualquer passo violento e chocante. Não perdi então nenhuma benevolência, ganhei muitas mais. A doença deu-me igualmente o direito a uma completa inversão de meus hábitos."
(Friedrich Nietzsche, em ‘Ecce homo’)

Pensar uma filosofia prática, que se volta para a própria vida, que reconhece singularidades e habilita diferenças, implica em nos reconhecer como capazes de avaliar a nós mesmos, nos libertando das amarras da tradição e de uma moral enfraquecida, que nos coloca na posição de depender de um olhar alheio para avaliar e legitimar sobre nós. Assim passamos a dar maior atenção e a cuidar de nosso corpo e das atividades que nos dedicamos de maneira singular.

filosofia como cuidado da alma abre uma possibilidade apropriar-se de si, de sua vida e das experiências, reconhecendo toda a dor e o sabor da existência, para além das certezas e dos modelos de "saúde", permitindo a criação de novos modos de vida, concebendo a vida como uma obra de arte, em constante criação e confusão com o mundo, nos habilitando a inventar continuamente outros modos de vida, mas salutares e interessantes ao nosso corpo e experiência.


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Sâo Paulo: WWF, 2010.
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 2000.
FREIRE, Roberto. SOMA - Uma Terapia Anarquista. Volume 2. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução: Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyné, 2020.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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