A psicologia não é uma ciência neutra, pois atua diretamente sobre as pessoas - suas atitudes, aflições, comportamentos e modos de vida, especialmente sobre como cada pessoa lida consigo mesma, com suas angústias, desejos, receios, dores e conflitos. Em sua atuação prática e na produção de seus saberes estão envolvidos interesses morais, ideológicos e disciplinares.
Há tendências libertárias, que habilitam e validam as singularidades e as diferenças de cada pessoa, possibilitando a criação e o encontro de outros modos de vida, mais salutares e criativos, mas há também aquelas que se dedicam à manutenção da pessoa a um modo de vida conservador, partindo de um modelo prévio de "saúde mental" ou "vida adequada", que servem para manter um o indivíduo "ajustado" a um modelo de sociedade.
A maioria das psicólogas e dos psicólogos não se dão conta das implicações de sua atuação, não percebem que sua prática pode estar servindo a um modelo moral e político, ou para a conservação de um modelo de vida. Por isso, é preciso estar atento para que o profissional não caia numa prática meramente tecnicista, atuando como um "policial da subjetividade" dos outros, delimitando o que pode ou não pode, discriminando os modos de vida "saudáveis" ou "doentios".
"Quem são, porém, as pessoas sadias? Como se definem a si próprias? As definições de saúde mental propostas pelos especialistas usualmente correspondem à noção de conformismo a um conjunto de normas sociais mais ou menos arbitrariamente pressupostos."
(David Cooper, em 'Psiquiatria e Antipsiquiatria')
Aquele que está vivenciando um sofrimento emocional é muitas vezes entendido como alguém que difere da maioria, percebido como uma pessoa que "atrapalha" a estabilidade social. Por se diferir e atrapalhar, precisa ser "reajustado". Essa noção de diferença e ajuste pressupõe a existência de um modelo "adequado" de ser, de um modo "normal" de vida, onde todos "devem" se alinhar a ele. Qualquer noção de "saúde psíquica" utilizada por uma abordagem terapêutica propõe inevitavelmente a adesão a um modo de vida de acordo tal noção. Algumas perspectivas libertam e outras aprisionam.
A psicologia moderna, especialmente em sua tendência positivista, produz subjetividades e modos de vida a partir da determinação de modelos de comportamento entendidos por "saudáveis" e "adequados", em contraste com aqueles entendidos como "doentios" e "inadequados". O processo terapêutico realiza uma intervenção nos modos de vida, nas maneiras da pessoa lidar consigo mesma, com os outros e com os espaços, "endireitando" a pessoa a um modo de ser entendido como "saudável".
"A psicopatologia do século XIX (e talvez ainda a nossa) acredita situar-se e tomar suas medidas com referência num 'homo natura' ou num homem normal considerado como um dado anterior a toda experiência da doença. Na verdade, esse homem normal é uma criação."
(Michel Foucault, em 'História da Loucura')
Neste sentido, nem sempre a psicologia "liberta", mas muitas vezes aprisiona, conduzindo a pessoa de acordo com uma normativa entendida por "adequada" e "saudável". E o que se tem por "adequado", não é apenas fruto de uma constatação científica, mas resultante de interesses morais, políticos, ideológicos e disciplinares. A noção de "normal" que orienta o trabalho do psicólogo nem sempre é declarada, mas na maioria das vezes permanece oculta e impregnada em sua prática.
Entre os fundamentos da ciência psicológica e do estabelecimento do "normal" há diversos interesses em jogo. Atualmente, grande parte da psicologia visa a manutenção de um modelo neoliberal de vida a partir de uma noção de "normal". Assim, grande parte da atuação de psicólogos e psiquiatras acaba servindo a este paradigma sem questionamentos, na maioria das vezes sem mesmo que estes percebam.
"A otimização pessoal permanente, que coincide em sua totalidade com a otimização do sistema, é destrutiva. Ela conduz ao colapso mental. Mostra-se como a autoexploração total. A ideologia neoliberal da otimização pessoal desenvolve características religiosas e até mesmo fanáticas; representa uma nova forma de subjetivação."
(Byung-Chul Han, em 'Psicopolítica')
Qualquer proposta em psicologia que se dedique ao "treinamento de pessoas" ou à "inteligência emocional", para o aumento da "eficiência" e do "desempenho" do sujeito, está explorando as pessoas em sua atuação prática, não apenas no nível da disposição ao trabalho, mas em toda a sua vida, sujeitando as pessoas às necessidades do mercado neoliberal e à ordem moral, sem nenhuma preocupação com a qualidade de vida de cada pessoa em sua singularidade e diferenças.
Essa psicologia não revela uma "verdade oculta" sobre as pessoas, mas produz um discurso sobre os sujeitos, com intenção de elaborar uma verdade sobre eles. Sua pretensão de explicação e universalização reduz as diferenças e inconstâncias ao cérebro, ao inconsciente, ao indivíduo, ocultando seu desejo de constância e de norma, de uma sociedade "estável". Assim opera uma distinção entre os "normais" e os "anormais", criando saberes e técnicas para identificar os que não correspondem à norma, para ajustar ou medicar. Sua preocupação maior não é o sofrimento emocional, mas a normalização e a
A psicologia que aprisiona entendo ser aquela que conduz a pessoa para um modo de vida específico, que determina rigidamente as distinções entre saudável e patológico, e submete as pessoas a esta avaliação, classificando estas apenas a partir de alguns sintomas percebidos, deixando de lado as diferenças particulares de cada um. Enquanto a psicologia que liberta permite a pessoa avaliar a si mesma e traçar seus caminhos, experimentando a vida a partir de suas experiências e encontrando maneiras de ser salutares para si, ao invés de ser guiada.
Por Bruno Carrasco.
Referências:
COOPER, David. Psiquiatria e Antipsiquiatria. São Paulo: Editora Perspectiva, 1989.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2017.
FRAYZE-PEREIRA, João. O que é Loucura. São Paulo: Brasiliense, 2002.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyné, 2020.
SERRANO, Alan Indio. O que é Psiquiatria Alternativa. São Paulo: Brasiliense, 1992.