Transformações no conceito de ciência

O modo como hoje entendemos a ciência, enquanto uma forma privilegiada de conhecimento, nem sempre foi compreendido desta maneira no decorrer da história. Seu conceito assumiu entendimentos e características diversas conforme os contextos históricos, filosóficos e culturais de cada época.

A trajetória da ciência no Ocidente é marcada por transformações, desde sua origem como “episteme”, na Grécia Antiga, até sua concepção contemporânea como construção social, provisória e revisável. Quando conhecemos essa história, entendemos que o conceito de ciência foi, e continua sendo, uma produção histórica, filosófica e cultural.


Ciência na Antiguidade: o saber como verdade

Na Grécia Antiga, a ciência era entendida como "episteme", um saber universal, necessário e verdadeiro, distinto da "doxa", entendida como uma mera opinião. Os filósofos pré-socráticos iniciaram um movimento de investigação racional da physis (natureza), buscando os princípios que explicassem a ordem do cosmos.

  • Parmênides (515–460 a.C.) afirmou que o ser é, e o não-ser não é, entendendo que o verdadeiro conhecimento só pode ser obtido por meio do que é eterno e imutável. O conhecimento sensível é entendido como ilusório, por ser sujeito à mudança e à transitoriedade.
  • Demócrito (460–370 a.C.) propôs uma distinção entre conhecimento sensível (obscuro) e racional (legítimo), propondo o atomismo, onde tudo o que existe é composto por átomos indivisíveis, e as diferenças entre as coisas resultam do movimento e da combinação desses átomos.
  • Sócrates (469–399 a.C.) deslocou o foco do estudo da natureza para o ser humano, propôs a "maiêutica" como um método que faz o saber emergir do diálogo crítico, partindo da ignorância.
  • Platão (c. 427–347 a.C.) entendia que o conhecimento verdadeiro era uma reminiscência da alma das "ideias eternas", acessíveis apenas por meio da razão, priorizando as ideias em detrimento do mundo sensível, entendido como instável e incapaz de alcançar um conhecimento científico.
  • Aristóteles (384–322 a.C.) elaborou uma concepção mais sistemática da ciência, enquanto um conhecimento pelas "causas" (material, formal, eficiente e final), obtido por meio da dedução lógica (ou silogismo), um raciocínio em que certas premissas estabelecidas seguem necessariamente uma conclusão, este entendimento se tornou a base da lógica clássica.


Idade Média: ciência iluminada pela fé

Durante a Idade Média, a ciência foi reinterpretada à luz do cristianismo. O conhecimento científico e filosófico passou a ser subordinado à fé, onde a "verdade última" residia em Deus. A razão humana, embora válida, era vista como limitada e dependente da "iluminação divina".

  • Santo Agostinho (354–430) entendia o conhecimento verdadeiro como aquele que reside na mente de Deus, onde o ser humano só pode alcançar se sua razão for iluminada pelo divino.
  • Boaventura (1221–1274) reforçou a centralidade da iluminação divina, entendendo que a verdade não é uma criação humana, mas uma revelação divina.
  • São Tomás de Aquino (1225–1274) propôs uma conciliação entre a fé cristã e a filosofia aristotélica. Para ele, a razão humana pode conhecer verdades naturais, mas as verdades últimas dependem da fé. Utilizou a noção aristotélica de "intelecto agente", como derivado de Deus, que permite ao ser humano abstrair conceitos universais.
  • Guilherme de Ockham (1288–1347) entendia que a ciência se baseava num conhecimento intuitivo, que apreende diretamente o existente, e abstrato, que generaliza a partir da experiência sensível, valorizando a experiência concreta como fundamento do saber científico.


Idade Moderna: o nascimento do método

A Revolução Científica, entre os séculos XVI e XVII, transformou profundamente o conceito de ciência. Houve uma valorização crescente da observação, da experiência e da matemática, juntamente com o surgimento de um método científico estruturado.

  • Francis Bacon (1561–1626) propôs o método indutivo, onde a ciência deveria partir da observação dos fenômenos para alcançar as leis gerais, baseando-se numa ordenação rigorosa dos fatos.
  • Galileu Galilei (1564–1642) rompeu com a física aristotélica, inaugurando a física moderna ao combinar observação empírica com experimento controlado e modelagem matemática. Para ele, a "natureza está escrita em linguagem matemática".
  • René Descartes (1596–1650) fundamentou o conhecimento científico em princípios racionais e indubitáveis. Seu "penso, logo existo" (cogito ergo sum) é o ponto de partida para uma ciência construída sobre verdades claras e distintas, indubitáveis.
  • Isaac Newton (1642–1727) unificou a física terrestre e celeste sob as leis matemáticas universais, consolidando o paradigma "mecanicista", onde o universo é entendido como uma grande máquina regida por leis imutáveis.
  • John Locke (1632–1704) propôs uma perspectiva empirista, onde todo conhecimento é derivado da experiência sensível, e a mente humana é uma tábula rasa preenchida pelas percepções.
  • Immanuel Kant (1724–1804) tentou resolver a tensão entre empirismo e racionalismo, entendendo que o conhecimento resulta da síntese entre a sensibilidade (dados empíricos) e as formas a priori do entendimento (categorias).


Período Contemporâneo: ciência como construção

A partir do século XIX e ao longo do século XX, a concepção moderna de ciência passou a ser questionada e compreendida como uma atividade humana histórica, provisória e construtiva, em contraste com a visão clássica de uma "certeza absoluta".

  • Friedrich Nietzsche (1844-1900): entendeu a ciência como uma forma de interpretação de mundo entre outras, não como portadora da verdade última, ele criticou a ciência moderna por manter o ideal ascético da busca de um sentido absoluto e objetivo para o mundo.
  • Positivismo lógico: desenvolvido pelo Círculo de Viena no início do século XX, procurou eliminar a metafísica da ciência, passando a considerar cientificamente válidas apenas as proposições "empiricamente verificáveis", lógica e matematicamente dedutíveis, a linguagem da ciência deveria ser formalizada e precisa.
  • Falsificacionismo: Karl Popper (1902–1994) reagiu ao positivismo com o falsificacionismo. Para ele, em vez de verificar, o cientista deve tentar falsificar suas hipóteses. Uma teoria é científica apenas se for refutável, de modo que a ciência avança por conjecturas e refutações, não pelo acúmulo de observações confirmatórias.
  • Revoluções científicas: Thomas Kuhn (1922–1996) criticou a visão linear de "progresso científico". Para ele, a ciência se desenvolve em ciclos, passando por fases como: ciência normal, crise, revolução científica, e nova ciência normal, onde uma revolução científica substitui um paradigma anterior por outro.
  • Construtivismo: correntes construtivistas, como as de Paul Feyerabend (1924-1994) e Bruno Latour (1947-2022), enfatizaram a ciência como uma construção social e cultural. Para eles, não existe um “método científico” universal e neutro, mas múltiplas práticas científicas moldadas por interesses, instituições, discursos e disputas de poder.
  • Michel Foucault (1926-1984): entendia a ciência como uma criação discursiva historicamente situada, que produz verdades atravessadas por relações de poder, não sendo neutra nem universal.

Enfim, a história do conceito de ciência no Ocidente é marcada por grandes transições, indo da ciência como saber absoluto e eterno para a ciência como prática situada e revisável. O conceito de ciência, portanto, não é fixo, mas múltiplo, tensionado, historicamente configurado e filosoficamente questionável.


Referências:
ABRÃO, Bernadette. História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
DESCARTES, René. Discurso do Método. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 12 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
OLIVA, Alberto. Filosofia da Ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.

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