Filosofia da diferença é uma perspectiva que prioriza a diferença no pensamento e no entendimento da realidade, contrariando a tradição da filosofia ocidental que privilegiava a identidade e a semelhança. Ao invés de entender a diferença como algo secundário ou derivado da identidade (variação ou desvio em relação a um fundamento), concebe a diferença como característica primordial do ser e da experiência, inclusive como algo produtivo e criativo.
Essa perspectiva emerge de uma crítica à metafísica tradicional, que historicamente subordinou a diferença à identidade, com conceitos como "essência", "ser", "permanência", "unidade" e "verdade universal". Contrariando a tendência tradicional, a filosofia da diferença valoriza o devir, o processo, a impermanência, a multiplicidade e a variação, rejeitando a ideia de que o mundo possa ser entendido em termos de uma estrutura fixa ou de uma essência imutável.
A tradição da filosofia ocidental concebe o mundo como algo que a ser organizado a partir de categorias estáveis e identidades fixas. Podemos pensar a tradição como uma árvore com uma raiz central (a identidade) e todos os seus ramos partindo desse ponto fixo. A filosofia da diferença prefere a metáfora do rizoma, uma rede que se compõe e se espalha de maneira descentralizada, sem hierarquias, sem um ponto de origem fixo ou claro, onde cada parte se conecta a várias outras.
O filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995) rompeu com a tradição ocidental ao priorizar a diferença em oposição à identidade. Na filosofia clássica, desde Platão até Hegel, a diferença permaneceu subordinada à identidade, o diferente era sempre entendido em contraste com uma essência ou a um padrão pré-estabelecido. Deleuze inverteu essa lógica ao conceber a diferença como algo primordial e produtivo, que não deriva de uma identidade anterior, mas que a constitui.
Deleuze propõe a filosofia da diferença como uma ruptura para com a tradição metafísica ocidental, que historicamente priorizou a identidade e a semelhança. Tradicionalmente, a diferença era entendida como derivada da identidade, e não enquanto diferença em si. Entendia-se que para diferenciar uma coisa da outra, as identidades de ambas as coisas já deveriam estar estabelecidas. Deleuze reverte essa lógica, concebendo a diferença de maneira ontologicamente primária.
Neste sentido, a identidade não seria algo essencial nem fundamental, mas um produto dos processos de diferenciação. Em vez de representar o mundo a partir de identidades e semelhanças, a filosofia da diferença destaca o fluxo, a multiplicidade e o devir, contrariando a identidade, a essência e a representação. Inclusive, não concebe o ser enquanto algo fixo, mas sempre como movimento e constante transformação.
Podemos imaginar a diferença como um oceano em movimento, as ondas estão sempre se formando e transformando, sem nunca se fixarem numa forma definitiva. A identidade, neste sentido, seria apenas um fragmento desse fluxo de mudanças intermináveis. Ao invés de buscar um ponto fixo para descrever algo, a filosofia da diferença explora o processo contínuo de transformação e criação.
Para Deleuze, a identidade é resultado de processos de diferenciação, onde o ser não se define por algo estático e imutável, mas pela diferença contínua, com suas variações e multiplicidades. A diferença não é algo a ser corrigido ou superado, mas uma força criativa e transformadora. E a repetição nunca é mera repetição de algo idêntico, mas sempre variação. A diferença não é uma negação da identidade, mas uma força criativa que possibilita o novo e distinto.
"Passamos nosso tempo sendo atravessados por fluxos. E o processo é o percurso de um fluxo. O que isso quer dizer? Nesse sentido o processo quer dizer, antes de tudo: é a imagem, bem simples, como de um riacho que escava seu leito. Ou seja, o trajeto não preexiste à viagem. É isso um processo. O processo é um movimento de viagem enquanto que o trajeto não preexiste, ou seja, enquanto ele traça, ele mesmo, seu próprio trajeto. Não se trata do percurso sobre trilhos, não é o espaço estriado, ou seja, não há estrias que preexistem ao movimento."
(Gilles Deleuze, aula 'Anti-Édipo e outras reflexões')
Deleuze rompe a concepção de "ser" enquanto algo fixo, estável e permanente. Segundo ele, a ontologia deve ser pensada como "devir", um fluxo contínuo de mudanças e transformações que nunca cessam, e nunca alcançam uma unidade. Devir é movimento contínuo, fluxo e mudança. A diferença é imanente à existência, não há um ser imutável ou essencial por trás dos processos de diferenciação, mas apenas as diferenças.
Em seu trabalho com Félix Guattari, "Mil Platôs" (1980), exploram a noção de multiplicidade e rizoma, recusando hierarquias e centros fixos de poder. Deleuze e Guattari propõem pensar o mundo de maneira rizomática, sem um ponto de partida ou um destino final, mas como uma rede de diferenças e conexões, em constante transformação, entendendo a vida e o pensamento como fluxos abertos e plurais, em constante diferenciação.
Na tradição filosófica, a diferença era entendida como uma variação entre objetos, conceitos ou seres. Em Deleuze, a diferença é pensada como "diferença em si", concebendo a realidade não como uma mera variação sobre um tema, mas como criação contínua. O ser não é algo fixo ou estático, mas constituído por fluxos dinâmicos de diferenças. Em vez de as coisas serem "diferentes de", elas são "diferenciações", diferenças em si mesmas.
A filosofia ocidental, segundo Deleuze, está presa numa "metafísica da representação", que organiza o pensamento em torno de modelos fixos e hierárquicos. Esse modo de pensar é limitador, pois reduz a multiplicidade e a diferença a categorias fixas. O rizoma é uma multiplicidade aberta, que permite pensar a realidade como um campo de conexões, onde as diferenças emergem de modo imprevisível e não-linear.
A filosofia da diferença valoriza o pensamento enquanto criação. Enquanto a tradição filosófica tende a buscar verdades universais e atemporais, Deleuze encara a filosofia como uma atividade criativa, em constante produção de novos conceitos e modos de pensar, rejeitando o aprisionamento do pensamento em modelos conceituais rígidos, enfatizando o novo, o diferente e o inesperado como fontes de pensamento e vida.
Por deslocar a primazia da identidade para a diferença, Deleuze abre caminho para uma filosofia da multiplicidade, do devir e da criação contínua, sem subordinar o novo ao estabelecido. Sua filosofia nos convida a repensar a realidade como um campo de forças em constante movimento e diferenciação.
Por Bruno Carrasco, terapeuta e professor, graduado em psicologia, licenciado em filosofia e pedagogia, pós-graduado em ensino de filosofia, psicoterapia fenomenológico-existencial e aconselhamento filosófico. Pensa as questões psicológicas a partir de um viés filosófico, histórico e social, pesquisando sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.
Referências:
AMARAL, Leonardo. Trechos selecionados da aula Anti-Édipo e outras reflexões. Fractal: Revista de Psicologia, v. 28, n. 1, p. 160-169, jan.-abr. 2016.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995.
MACHADO, Roberto. Deleuze, a Arte e a Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.