O que é Psicopatologia Crítica?

Tarin, Francis Picabia (1930)

Nos últimos anos presenciamos uma tendência crescente de patologização das diferenças e uma atuação prioritariamente medicamentosa com relação a questões de saúde mental. Essas práticas reduzem as complexidades e os diferentes modos de existir de cada pessoa em categorias diagnósticas, enfraquecendo a compreensão e o cuidado com o sofrimento emocional.

Diante deste contexto, a psicopatologia crítica emerge como uma perspectiva que coloca em questão e problematizar as práticas tradicionais, visando resgatar a singularidade de cada pessoa e suas peculiaridades, propondo uma visão mais ampla e abrangente sobre o sofrimento emocional, enquanto um conjunto questões existenciais, históricas, contextuais e singulares.

"Uma Psicopatologia Crítica não tem a ambição de ser um enfoque ou, menos ainda,uma disciplina. Trata-se de uma compreensão des-ideologizadora das manifestações psicopatológicas onde, a partir da compreensão do complexo arcabouço ideológico que sustenta a psicopatologia hoje, se construam caminhos para uma prática clínica que vá além."
(Virginia Moreira, em 'Psicopatologia Crítica')

A patologização das diferenças acontece quando comportamentos ou características que fogem aos padrões considerados "normais" são percebidos e tratados como transtornos mentais. Essa prática tende a estigmatizar e marginalizar as pessoas que não se enquadram nos moldes socialmente aceitos, tratando o diferente como um problema a ser ajustado.

Quando classificamos e rotulamos as diferenças enquanto patologias, ignoramos a complexidade da diversidade humana, criando barreiras para nos aproximar das pessoas que vivem, pensam ou sentem de maneira distinta do "padrão social". A psicopatologia crítica contraria essa tendência, enfatizando a importância de reconhecer e valorizar a singularidade e as peculiaridades de cada indivíduo.

A biologização do comportamento humano pressupõe que os problemas mentais e emocionais são causados unicamente por disfunções neuroquímicas ou desequilíbrios no cérebro. Essa perspectiva é reducionista, pois minimiza as influências de fatores sociais, culturais e contextuais no comportamento e nas emoções, desconsiderando a complexidade da experiência humana e sua relação com o contexto.

De modo geral, a perspectiva hegemônica em psicopatologia, com viés biomédico, nos é apresentada como a única existente, mas há distintas perspectivas que colocam em questão e criticam esta tendência, buscando um entendimento mais amplo sobre o sofrimento emocional, entendendo que o sofrimento psíquico é resultante de um contexto específico e de relações sociais difíceis, que não pode ser reduzido em sintomas padronizados e generalistas.

O modelo médico hegemônico muitas vezes baseia-se em padrões culturais e normas dominantes para definir o que é normal e o que é patológico. Isso pode levar à exclusão e marginalização de pessoas que não se enquadram nos padrões estabelecidos, reforçando estigmas e preconceitos. A psicopatologia crítica argumenta que é necessário questionar as normas estabelecidas e ampliar a compreensão da diversidade humana, validando as diferentes formas de ser e de viver.

Uma das contribuições mais importantes da psicopatologia crítica consiste em propor uma compreensão mais ampla e contextualizada do sofrimento psíquico, buscando analisar questões sociais, históricas, políticas, econômicas e culturais que influenciam a emergência e a permanência de comportamentos considerados patológicos.

Além disso, coloca-se em questão o que entendemos por patológico e a medicalização excessiva da vida cotidiana. Atualmente, dificuldades emocionais e comportamentais estão sendo entendidos como transtornos mentais e tratados com psicotrópicos, muitas vezes sem uma análise aprofundada dos fatores sociais que contribuem para tais dificuldades. A psicopatologia crítica considera o contexto social para a compreensão dos sofrimentos psíquicos, evitando reduzi-los a meras questões individuais.

"Cabe à uma psicologia verdadeiramente interessada na promoção de saúde lutar pela construção de uma realidade social emancipadora dos sujeitos, voltar-se para o desenvolvimento integral do ser humano em suas diversas capacidades, não contentando-se simplesmente em agir no sentido de apaziguar as revoltas e docilizar os sujeitos."
(Toso & Souto, 'A psicologia frente a patologização e medicalização da vida')

As perspectivas críticas em psicopatologia atuam por meio de uma escuta atenta e um acolhimento empático das questões individuais, reconhecendo que cada pessoa possui sua própria história e significados particulares com relação ao seu sofrimento. Além disso, colocam em questão as noções tradicionais de normalidade e anormalidade, levando em consideração os fatores sociais, políticos e culturais que possibilitaram a emergência de estados de sofrimento emocional.

Entendem que a realidade é construída socialmente por meio de processos de interação e significados compartilhados, considerando as diferenças culturais para compreensão do sofrimento emocional. As normas e os valores variam conforme as culturas, assim, o que pode ser considerado "anormal" em uma cultura pode ser aceito em outra. Portanto, é fundamental compreender o contexto cultural onde a pessoa está inserida ao avaliar sua saúde mental.

O sofrimento emocional é entendido como resultante das interações sociais, da história de vida e do contexto onde emerge. Portanto, a perspectiva crítica analisa as relações de poder e as estruturas de opressão presentes na sociedade, e como elas afetam a compreensão e o cuidado com o sofrimento emocional, questionando as noções de normalidade estabelecidas pelas instituições para dar voz às experiências de cada pessoa em sua singularidade.

Desafiando as concepções dominantes em psicopatologia, busca-se uma compreensão mais ampla e contextualizada dos transtornos mentais. Suas críticas à abordagem tradicional baseada em categorias diagnósticas rígidas, enfatiza a importância de compreender as experiências individuais e as dimensões contextuais do sofrimento emocional. Essa perspectiva busca considerar a diversidade das experiências de cada pessoa em sofrimento.

A perspectiva crítica incorpora diversas influências teóricas, como a fenomenologia e a teoria crítica, visando resgatar a singularidade da pessoa que sofre. A fenomenologia enfatiza a importância da compreensão da experiência humana sem pressuposições teóricas, considerando o modo como cada pessoa percebe e vivencia seu sofrimento. A teoria crítica enfatiza a análise das estruturas sociais para uma transformação social emancipatória.

Diferente da psicopatologia tradicional, que tende a rotular e estigmatizar as pessoas com base em suas diferenças e dificuldades emocionais ou mentais, a psicopatologia crítica busca uma compreensão mais ampla do sofrimento psíquico, considerando os fatores contextuais e criticando a medicalização excessiva. A compreensão do sofrimento emocional deve levar em conta o contexto social, as relações pessoais e as experiências vividas pelos indivíduos.

Enfim, a psicopatologia crítica tende a um olhar mais contextualizado, individualizado e socialmente consciente do sofrimento psíquico, evitando a redução simplista e estigmatizante das experiências humanas a meros transtornos mentais. Ela desafia os modelos predominantes, propondo uma visão mais ampla da diversidade humana, sendo uma alternativa às tendências dominantes que tendem a rotular e estigmatizar indivíduos com base em suas diferenças e dificuldades emocionais ou mentais.


Por Bruno Carrasco, terapeuta e professor, graduado em psicologia, licenciado em filosofia e pedagogia, pós-graduado em ensino de filosofia, psicoterapia fenomenológico-existencial e aconselhamento filosófico. Busca pensar questões psicológicas a partir de um viés filosófico, histórico e social. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
HENRIQUES, Rogério P. Psicopatologia crítica: guia didático para estudantes e profissionais de Psicologia. São Cristóvão: Editora UFS, 2012.
COOPER, David. Psiquiatria e Antipsiquiatria. Tradução: Regina Schnaiderman. São Paulo: Editora Perspectiva, 1982.
HEATHER, Nick. Perspectivas Radicais em Psicologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
SERRANO, Alan I. O que é Psiquiatria Alternativa. São Paulo: Brasiliense, 1992.
TOSO, R. A.; MEIRA SOUTO, L. A Psicologia frente a patologização e medicalização da vida. Psicopatologia crítica: perspectivas do sofrimento existencial, v. 1, n. 1, 11 nov. 2020.