Breve histórico da Subjetividade

Estudo para três cabeças, Francis Bacon, 1962

De acordo com Figueiredo e Santi (2004), os modos que pensamos e sentimos nossa existência não são universais. Historiadores e antropólogos entendem que a percepção que temos de nós mesmos, enquanto sujeitos capazes de decisões, com sentimentos e emoções privados, se constituiu apenas muito recentemente na história da humanidade, numa sociedade com características específicas.

A constituição e os desdobramentos de uma subjetividade privatizada na Modernidade só foi possível num período de grandes transformações sociais, marcado pelo Renascimento, pelo Mecanicismo, pela Revolução Francesa, pela Revolução Industrial, com a introdução da economia liberal, a experiência das duas Guerras Mundiais, somado à revolução da informática, a inteligência artificial, entre outros.

A subjetividade medieval permitia que as pessoas se sentissem parte de um todo maior, em comunhão com uma ordem superior, a perda dessa orientação gerou uma enorme sensação de liberdade, mas, ao mesmo tempo, de desamparo. Com o Humanismo, passamos a valorizar o ser humano enquanto sujeito livre para seguir seu caminho, a Imprensa possibilitou a difusão da leitura silenciosa e a experiência de um diálogo interno consigo mesmo.

O Racionalismo e o Iluminismo nos possibilitaram crer que a razão é capaz de guiar as pessoas e resolver seus problemas, o Romantismo trouxe uma contraposição ao racionalismo, entendendo a importância dos impulsos e das forças naturais, bem como as emoções. Percebemos, neste breve percurso, um privilégio do “eu”, mas não nos precipitemos, pois em pouco tempo este será dissolvido, como escreveu Foucault,

“O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo”
(Michel Foucault, em 'As palavras e as coisas')

A Economia Liberal e o Mercado Capitalista vão gerando cada vez mais experiências individualizadas entre as pessoas, intervindo de maneira cada vez mais ampla e profunda nas relações humanas, sejam estas de trabalho, de amor ou lazer. Trata-se do aparecimento de uma nova economia, um novo uso dos corpos, das atividades e dos afetos, uma nova maneira de se dispor no tempo e no espaço.

“A sociedade fica, dessa forma, atomizada, quer dizer, em vez de comunidades produtivas, temos indivíduos livres produzindo ou vendendo sua força produtiva a proprietários privados. Mas esse indivíduo livre é um desamparado.”
(Ribeiro & Santi, 43p)

Passamos a conviver com a indecisão de nossas escolhas, com a incerteza de nossos destinos, e vemos emergir nesse momento, entre a passagem do século XVIII e XIX uma experiência de subjetividade privatizada, bem como sua crise, os diferentes desejos particulares geram cada vez mais conflitos internos e externos.

Para tentar resolver, ou diminuir esses conflitos, as instituições se utilizam de técnicas disciplinares que visam o controle total do indivíduo, observação e treinamento constantes se fazem presentes em empresas, fábricas e escolas, com vistas em manter cada indivíduo em seu lugar, e em cada lugar um indivíduo, regulando seus horários, suas atividades, seus movimentos e gestos, inclusive o que faz ou pode fazer em seu tempo de lazer, surge uma nova “anatomia política do corpo” (Foucault, Vigiar e Punir).

As ciências humanas passam a ser utilizadas como forma de produção de saberes e controle das pessoas: a sociologia, a psicologia, a antropologia, todas elas visam um conhecimento mais apurado sobre as pessoas e atuam como agentes de controle sobre os corpos, visando sua utilidade e docilidade.

Talvez nos seja difícil e quase impossível compreender os modos de subjetividade de nosso tempo, onde tudo muda numa enorme velocidade, com acesso a distintos modos de pensar, agir e sentir, onde somos atravessados simultaneamente pela publicidade, pelo discurso motivacional e pela tecnologia da inteligência artificial, tendo uma abundância e uma multiplicidade de modos de ser, viver e perceber.

O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em sua obra ‘Psicopolítica: neoliberalismo e as novas técnicas de poder’, estabelece uma relação entre os modos de subjetivação, a sujeição e a dominação, pautadas por uma lógica neoliberal, onde o capital representa uma nova forma de subjetivação que nos tira do plano imanente da vida, nos colocando num tempo de constante autocontrole e autoexame de si.

"A ideologia neoliberal da otimização pessoal desenvolve características religiosas e até mesmo fanáticas; representa uma nova forma de subjetivação."
(Han, em Psicopolítica)

Experienciamos na atualidade uma nova relação entre saúde e cobrança de si, onde vivemos uma rígida organização de regras sobre nós mesmos, horários e atividades a serem seguidas, nos sentimos extremamente frustrados e incomodados quando não conseguimos cumprir. Essas disposições que permeiam nosso tempo, são entendidas por Byung-Chul Han como uma nova forma de subjetivação, resultante de uma nova técnica de poder que atua sobre a mente e as emoções, de maneira pouco visível e com ares de positividade.

Em seu livro ‘Sociedade do Cansaço’, o filósofo analisa os efeitos colaterais do discurso motivacional, que gerou uma mudança no modelo anterior de obediência, hierarquia e controle pelas positividades do estímulo, da eficiência e da superação das próprias limitações. Han entende que vivemos diante de uma nova técnica coercitiva, a violência emocional, onde as pessoas se cobram cada vez mais para apresentar resultados, se tornando constantes vigilantes e controladoras de si mesmas.

Segundo Byung-Chul Han, a crença no "eu posso" está gerando cada vez mais um aumento de doenças psíquicas como depressão, transtornos de personalidade, hiperatividade e burnout. Este livro nos instiga a refletir sobre as relações de trabalho e as relações sociais atualmente, e suas consequências na mente e nas emoções das pessoas.

Vivemos hoje a sociedade do "curtir", que evita a dor a todo custo, e busca transformar tudo em curtição. O “curtir” se tornou o analgésico da vida, não apenas nas redes sociais, mas em todas as relações. A vida hoje tem de ser "instagramável", com rostos sorridentes e aparências de modelo, evitando e ocultando a todo custo os conflitos, as contradições, dores e sofrimentos.

Byung-Chul Han descreve as diversas técnicas de poder atuantes em nosso tempo, que se direcionam sobre a mente e as emoções, com foco no aumento de eficiência e desempenho, fazendo com que as pessoas se explorem constantemente acreditando ser livres. Aqueles que não conseguem alcançar as expectativas e metas estabelecidas sofrem se deprimem, apesar disso não questionam o sistema ou este modelo de vida exigente, pelo contrário, se sentem inadequados, entendendo seu sofrimento como resultante de uma falha pessoal ou "inadaptação".

A “arte de viver” pode ser entendida como uma das possíveis saídas dos modos de subjetivação e sujeição, evidenciando possibilidades de dessubjetivação e despsicologização do sujeito, de modo a experimentar e criar "outras individualidades, seres, relações, qualidades que não tenham nome" (Foucault).


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
FIGUEIREDO, Luiz C.; SANTI, Pedro L. Psicologia, uma (nova) introdução: uma visão histórica da psicologia como ciência. 2. ed. São Paulo: Educ, 2004.
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad.: Salma Tannus Muchail. 9ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Tradução: Maurício Liesen. Belo Horizonte: Âyné, 2020.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. Tradução: Enio Paulo Giachini. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

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