Aprender Etnopsiquiatria - François Laplantine

O livro 'Aprender Etnopsiquiatria', escrito por François Laplantine, oferece uma introdução sobre a Etnopsiquiatria, enquanto uma perspectiva que busca compreender o sofrimento emocional e sua terapêutica a partir dos referenciais culturais de cada pessoa e agrupamento.

Laplantine é professor de Etnologia na Universidade de Lyon II, na França. Neste livro, ele aborda sobre a gênese da etnopsiquiatria, mencionando a antropologia cultural e a etnopsicanálise, apresenta os principais eixos de pesquisa e os instrumentos operatórios do procedimento etnopsiquiátrico.

Trata-se de uma leitura muito importante para psicólogos, psicanalistas, psiquiatras e interessados em ampliar, por meio do conhecimento etnológico, suas concepções de diagnóstico individual e coletivo, assim como compreender a resolução destes por meio de recursos da própria cultura.

Trechos do livro:

a necessidade de uma abordagem que articule o psiquismo e a cultura desponta no quadro clínico todas as vezes que o terapeuta se encontra desamparado diante dos sintomas que julga estranhos e heterogêneos em relação à sua própria sociedade.

a etnopsiquiatria é o estudo das relações entre as condutas psicopatológicas e as culturas nas quais se inscrevem. Mais exatamente, é uma pesquisa pluridisciplinar e uma prática terapêutica nela fundamentada, que se esforça para compreender a dimensão cultural das perturbações mentais e a dimensão psiquiátrica das culturas, evitando o duplo obstáculo que consistiria em relativizar toda a psiquiatria e em psiquiatrizar toda a cultura.

George Devereux quem deve ser considerado o verdadeiro fundador dessa disciplina

Em resumo, sendo profundamente heterogêneas as culturas em que os indivíduos nascem e evoluem, o aparelho psíquico, no contato com elas, se constrói de maneira eminentemente distinta. Somos, então, levados a fazer afirmações como: não existe complexo de castração nas ilhas Marquesas (Kardiner), agressividade entre os Arapesh (Mead), complexo de inferioridade entre os japoneses (Benedict) e, principalmente - hipótese sobre a qual mais se escreveu -, não existe complexo de Édipo entre os trobiandeses (Malinowski).

É a partir de exemplos desse tipo que Ruth Benedict elabora sua teoria do "arco cultural": toda cultura procede de uma escolha. Valoriza um determinado segmento do grande arco das possibilidades da humanidade. Ela encoraja certo número de comportamentos em detrimento de outros que se vêem penalizados ou pura e simplesmente eliminados. Por um processo de seleção (não biológico, mas cultural), todos os membros de uma mesma sociedade partilham certo número de preocupações, experimentam as mesmas inclinações e as mesmas aversões. O que caracteriza uma sociedade é uma "configuração cultural", uma lógica que é encontrada tanto na especificidade das instituições quanto nos comportamentos. Toda cultura busca realizar um objetivo, ignorando os indivíduos. Cada um de nós possui em si todas as tendências, mas a cultura à qual pertencemos procede de uma seleção. As instituições (e em particular as instituições educativas - família, escola, ritos de iniciação) visam, inconscientemente, a que os indivíduos fiquem em conformidade com os valores de cada cultura.

O antropólogo (seja ele sociólogo ou etnólogo) que, à semelhança da antropologia social, considera a cultura um conjunto de sistemas simbólicos totalmente independente do psiquismo, assim como o psiquiatra que utiliza uma forma de investigação exclusivamente médica (neurológica), ou a psicóloga presa a uma concepção estritamente monádica do indivíduo, reúnem-se num mesmo dogmatismo epistemológico: o de um discurso absoluto ao qual corresponde uma leitura absoluta do normal e do patológico.

Para a etnopsiquiatria, ao contrário, os comportamentos, tanto normais quanto patológicos, longe de serem resultante de um condicionamento da "sociedade", são atos individuais, alimentados com o peso da cultura mas irredutíveis a esta.

Assim como existe uma antropologia cultural, existe uma psiquiatria cultural, ou seja, uma prática clínica que tenta levar em conta particularidades étnicas a partir das quais os diferentes processos psicopatológicos de um dado grupo social se elaboram.

Atualmente, todos os pesquisadores que praticaram a etnopsiquiatria, não importa em que continente, chegam facilmente a concordar com o fato de que existem tanto perturbações psicológicas características de grandes áreas de civilização quanto uma profunda unidade dos processos da doença mental. A estrutura e a economia de uma psicose ou de uma neurose variam pouco, em última análise, de uma sociedade para outra. O que é diferente é o conteúdo, isto é, o material com os que se constroem os grandes processos psicopatológicos.

Devemos, pois, afirmar tanto a identidade dos quadros clínicos em estrutura e sua economia (o que talvez possa ser localizado por qualquer psiquiatra) como a diferença quanto à sua frequência, seu conteúdo e a maneira como são percebidos e tolerados.

Traçada a partir de observações diretas de comportamentos ligados a uma perturbação psicoafetiva, a etnopsiquiatria tem então como tarefa reunir esses comportamentos à totalidade social na qual se inscrevem, a fim de fazer despontarem tanto lógicas específicas quanto diferenças significativas entre os modos de reações mórbidas, as maneiras de repará-las e a parcela desempenhada pela respectiva sociedade na elaboração das perturbações mentais.

A etnopsiquiatria, assim encarada, procura analisar as maneiras com que outras sociedades, que não a nossa, apreendem a doença mental, procedem a seu tratamento e interpretam suas próprias concepções etiológicas e terapêuticas.

O que a experiência etnológica nos ensina é que o econômico, o político, o parental, o religioso, o médico, o psiquiátrico etc. são recortes orientados por categorias próprias exclusivamente das nossas sociedades e aos quais correspondem campos disciplinares cujas fronteiras se deslocam e se esfacelam quando passamos de uma cultura para outra ou em relação a uma mesma cultura no tempo. Assim, transpor para outro local que não o nosso essas categorias que, entre nós - e apenas entre nós - são funções distintas às quais correspondem instituições distintas e profissões distintas é, evidentemente, transpor nossos próprios pressupostos etnocêntricos sobre a natureza do político, do religioso, do médico, do psiquiátrico.

As psicoterapias tradicionais (rituais de exorcismo, cerimônias de possessão etc) são, segundo o conceito de Marcel Mauss, já citado anteriormente, "fenômenos sociais totais" constituídos pela interferência de relações econômicas, políticas, parentais, religiosas e terapêuticas, que não é espontaneamente percebida pelos agentes sociais.

O que é próprio do pesquisador em etnopsiquiatria é, com efeito, não ser mais portador da sociedade observada do que o ideólogo de sua própria sociedade, mas observador crítico e vigilante das duas.

O trabalho da etnopsiquiatria consistirá, então, em articular as significações psicológicas ou psicopatológicas evidenciadas pelo psicólogo ou pelo psicanalista (realização do desejo, mas ao preço de uma negação da realidade) e as significações culturais evidenciadas pelo etnólogo (culto da possessão como fenômeno da regulação social, permitindo ao grupo resolver seus conflitos e representar ritualmente suas tensões) e indagar-se sobre a pertinência científica dessas abordagens.

a etnopsiquiatria - que, inicialmente, é a experiência de uma dupla viagem, ao "interior" (psicanálise) e ao exterior (etnologia) - se acha confrontada com quatro elementos: a loucura e a não loucura, o arcaísmo e a modernidade, que são representações universais e virtualmente atualizáveis de cada um de nós.

Como mostrou Devereux em toda a sua obra, o psiquismo não é um produto secretado pela cultura local na qual fomos criados, o indivíduo não é um boneco, um autômato cujos sonhos e fantasias a sociedade poderia manipular. Qualquer que seja a sociedade na qual nasce e cresce, e nisso até mesmo nas mais "tradicionais" (ou as mais totalitárias), pode dar provas de desobediência, de insolência, de riso, de distanciamento crítico em relação aos modelos que sua própria cultura tende a lhe impor.

É impossível conceber uma cultura que não fosse vivenciada por um psiquismo (a primeira não existe em lugar nenhum a não ser no segundo). E, reciprocamente, é impossível pensar a própria formação da personalidade, isto é, os processos de aquisição cognitivos e afetivos, independentemente da cultura.

Assim, para a etnopsiquiatria, recorrer à cultura para tratar do psiquismo não é apenas levar em conta e utilizar como instrumento terapêutico o ambiente cultual do doente (este procedimento é o da psiquiatria social ou da sociopsiquiatria). É recorrer a categorias culturais que, aparentemente e apenas aparentemente, podem ser totalmente estranhas àquele a quem procuramos compreender e cujo sintoma procuramos tratar.

As desordens étnicas são sintomas, por assim dizer, “prontos”, isto é, que nos são diretamente propostos, em caso de crise individual, pela sociedade onde somos originários. São alimentadas e moldadas pelo peso da cultura da qual fazemos parte. São expressões - estaríamos tentados a dizer soluções - culturais para sofrimentos e conflitos intrapsíquicos.

A clínica etnopsiquiátrica nos ensina - continuamos a insistir neste aspecto uma última vez - que não há nenhum fantasma, nenhum sonho, nenhum desejo de um dado indivíduo a que não corresponda a um fenômeno social (mito, conto, costume, tradição, rito). E, reciprocamente, não há nenhum fenômeno cultural a que não corresponda um fantasma, um sonho, um desejo. Em outros termos, o sintoma privado, expressão de um conflito intrapsíquico, reatualiza cultura, principalmente uma forma de cultura da qual o paciente (e, com ele, em geral, o terapeuta) não tenha nenhum conhecimento.

Enquanto as ciências humanas clássicas tendem apenas em apreender o psicológico ou o social acabado, consumado, definitivo, a etnopsiquiatria se propõe estudar o psicológico (o intrapsíquico e a interação psíquica) e o cultural (mas também o intercultural) em curso, em perpétua mutação.

Enfim, a abordagem etnopsiquiátrica é deliberadamente perspectivista e, em consequência, decididamente antitotalitária. Contrariamente à concepções totais e exclusivas do social (as reduções do psicologismo, do sociologismo) que se arrogam o monopólio da interpretação e que confundem, nessa via, a representação do real e o próprio real, a etnopsiquiatria sabe que é apenas um ponto de vista possível sobre o mundo, forjado na junção de duas práticas sociais, necessariamente provisórias e aperfeiçoados.


Fonte:
LAPLATINE, François. Aprender Etnopsiquiatria. Trad.: Ramon Vasques. São Paulo: Brasiliense, 1998.