Experiência trágica da loucura em Foucault

A Mulher Louca, por Pieter Brugel (1563)

Michel Foucault foi um filósofo que pesquisou profundamente sobre a loucura e o olhar psiquiátrico sobre a loucura, bem como sua relação com o saber e o poder. Segundo ele, a loucura se tornou um saber e uma especialidade médica apenas no século XIX, inclusive a noção de "doença mental" não existia antes do final do século XVIII.

Em suas pesquisas, Foucault destacou as condições de possibilidade históricas das disposições e dos saberes para com a loucura, bem como a constituição da psiquiatria enquanto saber especializado sobre a loucura. Porém, antes da loucura ser objeto de estudo da medicina, ela transitou pelas obras de arte, a pintura e literatura, foi tema na filosofia e no direito.

"Desenvolvendo uma argumentação que tematiza não essencialmente o discurso psiquiátrico, mas o que lhe é anterior e exterior, História da loucura tem na psiquiatria seu alvo principal: seu objetivo é estabelecer as condições históricas de possibilidade dos discursos e das práticas que dizem respeito ao louco considerado como doente mental."
(Roberto Machado, em 'Foucault, a ciência e o saber')

O filósofo retoma a história não apenas para mostrar como as coisas aconteciam em outros tempos, mas para explicitar as relações entre o passado e o presente. Entendendo a história resultante de contingências e não teleológica, Foucault deixa de lado as noções que temos por "comum", "verdadeiro" e "correto", investigando como foi possível o estabelecimento dos fundamentos de nossos saberes e práticas, colocando em questão suas certezas científicas.

Suas pesquisas não pretendiam apresentar o modo como a "ciência evoluiu", mas como diversos saberes, práticas e condições sociais, econômicas e culturais possibilitaram a legitimação de um saber dito "científico". Segundo Foucault, uma ciência não se desenvolve apenas por saberes "científicos" e "neutros", mas é influenciada por distintas práticas e disposições sociais, religiosas e culturais, interesses econômicos, lutas de poder, etc.

Diferente dos livros e manuais de psiquiatria que descrevem o desenvolvimento da psiquiatria e seu olhar sobre a loucura, destacando sua verdade e essência, Foucault explicitou as condições de possibilidade históricas do surgimento do saber psiquiátrico, constatando sua progressiva dominação da loucura a partir da razão, que promoveu uma diferença entre a experiência trágica e a consciência crítica da loucura.

Ao estudar um período histórico que vai do final da Idade Média até meados da Idade Moderna, Foucault constata que a medicina demorou para se apropriar do fenômeno da loucura. No final da Idade Média a lepra desaparece no ocidente, esta se retira, mas deixa os leprosários e numa condição obscurecida. Durante a Renascença a loucura não é dominada nem tratada, é percebida como uma experiência trágica.

"No Renascimento, não havia hospital ou prisão para o louco; ele vivia solto, era um errante, às vezes expulso das cidades, freqüentemente vagando pelos campos, entregue a comerciantes, peregrinos ou navegantes."
(Roberto Machado, em 'Foucault, a ciência e o saber')

No final da Idade Média até o século XV, a "Nau dos Loucos" levava os loucos de uma cidade para a outra, o louco percorria caminhos de maneira liberta, inclusive haviam locais de encontro entre os loucos, festivais de loucos, textos escritos por loucos, e apesar da incerteza da sorte gerada pela navegação, haviam cidades que acolhiam os loucos. Neste período o louco era um peregrino, que relembra a cada um sua verdade, seu saber era restrito a poucos.

“A água e a navegação têm realmente esse papel. Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer."
(Michel Foucault, em 'História da Loucura')

O satirista germânico Sebastian Brant (1458-1521), em seu célebre poema "A Nau dos Insensatos", inclui em sua embarcação os avaros, os delatores, os bêbados, os desordeiros, os devassos e os insensatos. A loucura foi tema nas pinturas de Hieronymus Bosch (1450-1516) e Pieter Bruegel (1525-1569) expressando a perspectiva trágica, enquanto que na literatura e na filosofia é apresentada como uma sátira moral, com caráter crítico.

De um modo geral, a loucura fascinava as pessoas no final da Idade Média, ela se defendia, sustentava seus próprios discursos, se reivindicava, experienciava sua liberdade de não ser classificado, tratado ou preso, onde sua única prisão era a passagem, a transitoriedade. Aos poucos essa experiência trágica da loucura vai cedendo lugar a uma avaliação crítica a partir da razão, onde Foucault aponta uma cisão muito importante, entre razão e desrazão.

"Sem dúvida, entre formas de razão e formas da loucura, grandes são as semelhanças. E inquietantes: como distinguir, numa ação prudente, se ela foi cometida por um louco, e como distinguir, na mais insensata das loucuras, se ela pertence a um homem normalmente prudente e comedido?"
(Michel Foucault, em 'História da Loucura')

Trata-se de uma distinção entre a experiência trágica e a consciência crítica e sua reflexão moral, entre uma estranha alquimia dos saberes e a prudência e didática da moral. Essa disposição que se torna mais presente no século XVII, acabou por silenciar a loucura até os tempos atuais. A disposição moderna para com a loucura é tecnicista e fragmentada, salvo alguns poucos que retomam a perspectiva trágica, como Goya, Nietzsche, Van Gogh e Artaud.

A loucura em nosso tempo deixou de ser algo obscuro, se tornou algo revelado por meio das ciências da psiquê, que ditam sua "verdade", sendo uma das formas da razão. Para Foucault, isso representa a vitória da razão sobre a loucura, que passou a dominar a loucura, legitimada pela ciência. A loucura deixou de ser uma experiência trágica para se tornar um erro, uma ilusão, uma aparência falsa, e que "deve" ser corrigida. Não há mais um barco para os loucos peregrinarem, mas o hospital para seu tratamento.

"No registro das práticas sociais, Foucault aborda então, em primeiro lugar, a descrição da circulação da loucura, cuja figura maior está representada por essas naves, com os loucos embarcados, que percorriam alguns dos mais importantes rios da Europa. Passa depois à grande reclusão, o espaço no qual se recluiu quem já não tinha lugar na sociedade burguesa europeia dos séculos XVII e XVIII: os loucos, os indigentes, os vagabundos, os sodomitas, os blasfemos, as prostitutas, os libertinos, etc. E, finalmente, o relato chega até o momento em que surge o asilo psiquiátrico como o lugar de internação reservado aos doentes mentais. A cada uma dessas experiências sociais corresponde, no registro dos saberes (a filosofia, o direito, a medicina) ou da literatura, determinada concepção da loucura. Ela foi, para o Renascimento, a expressão de outro mundo, linguagem cósmica e trágica; para a Idade Clássica, desrazão; e para a Modernidade, doença mental."
(Edgardo Castro, em 'Introdução a Foucault')
 

Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2014.
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 2000.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura: na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2017.
MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.