Navio dos loucos (Stultifera Navis)

Navio dos loucos, Hieronymus Bosch, ~1495

O 'Navio dos loucos' ou a 'nau dos insensatos', é uma antiga alegoria que começa a aparecer na cultura ocidental, nas artes visuais e na literatura, entre os séculos XV e XVI, apresentando passageiros loucos num navio, que não sabem e nem se importam para onde vão.

Segundo o filósofo francês, Michel Foucault (1926-1984), em seu livro 'História da Loucura na Idade Clássica' (1972), o navio dos insensatos seria um símbolo da consciência viva do pecado e do mal na mentalidade medieval e nas paisagens imaginativas da Renascença, quando a loucura começa a assombrar a imaginação do homem ocidental.

Essa temática pode ser encontrada em diversas obras deste período, como nas pinturas 'Navio dos loucos’ de Hieronymus Bosch (~1490) e 'Margot a louca' de Pieter Brueghel (1564), e nas obras literárias 'Stultifera Navis' de Sebastian Brant (1494) e ‘Elogio da loucura’ de Erasmo de Roterdã (1509).

A pintura 'Navio dos Loucos', do artista holandês Hieronymus Bosch (1450-1516), feita em óleo sobre madeira, por volta de 1495, apresenta uma crítica, de forma alegórica, sobre os costumes da sociedade da época: a devassidão e a profanidade, inclusive no clero, o jogo e o álcool. Entre os protagonistas estão uma monja franciscana e um clérigo pobre e transgressor, que se encontram distraídos. Esta pintura foi feita num período de grande crise religiosa e social. 

Ilustração do Navio dos Tolos, Albrecht Dürer, 1494

O livro 'A nau dos insensatos' (Stultifera Navis ou Narrenschiff), escrito por Sebastian Brant em 1494, apresenta críticas e ironiza a sociedade de seu tempo sob a forma de um longo poema satírico, revelando um panorama dos costumes do final do século XV: os seresteiros noturnos sendo repelidos da janela com o conteúdo dos pinicos, a falsificação de dinheiro e a adulteração do vinho, o mensageiro bêbado que não consegue se lembrar da notícia a ser transmitida, os fiéis que levam para a igreja seus cães perdigueiros e gaviões de caça, a mania de falar ofensas e lançar maldições, entre outros.

Na obra de Brant, um grupo de loucos embarca em uma nave para Narragônia, a terra prometida dos insanos, e, antes do naufrágio, chegam a Schlaraffenland, a terra da riqueza. A obra possui diversas ilustrações em xilogravura, numa delas se vê escrito "A nau dos insensatos - Rumo à Insensatolândia! - Sejamos todos alegres – Segui por aqui – A bordo! A bordo, irmãos! Vamos partir! Vamos partir!".

A nau dos insensatos, Sebastian Brant, 1494

Esta foi uma das primeiras obras ricamente ilustradas a ser impressa em língua alemã no século XV e uma das mais populares. Após sua primeira edição, impressa em 1494, a sátira de Brant sobre a insensatez humana tornou-se um "best-seller" europeu. Em 1574, mais de 40 edições do texto haviam sido feitas, incluindo traduções para o latim, o francês, o inglês, o holandês e o baixo-alemão.

O texto descreve uma viagem fictícia de 112 insensatos pelo mar, cada um representando um certo tipo de conduta humana. A sucessão de insensatos é liderada pelo leitor tolo: convencido de sua aprendizagem, ele está empenhado em espantar as moscas que zumbem em torno de sua mesa abarrotada de livros que ele não abre para ler.

Brant não critica tanto a insensatez, mas o fato de permanecer insensato por não reconhecer as próprias falhas. Uma das razões para o grande sucesso da obra foi, sem dúvida, as xilogravuras de alta qualidade que introduzem e complementam o texto. Entre os artistas que colaboraram com Brant nesta obra está o pintor e ilustrador Albrecht Dürer (1471-1528).

Nesta sua nave simbólica, o autor acolhe os loucos de todas as categorias e promove um desfile das fraquezas humanas. Uma das estrofes diz: "É melhor seguir sendo laico do que comportar-se mal dentro das ordens". Há muitas semelhanças entre o livro e a pintura de Bosch, e é bem possível que o pintor se tenha baseado no poema.

A nave dos loucos era tanto um tema pictórico como também uma prática social, onde os loucos eram retirados dos centros urbanos e embarcados para navegar sem rumo. A água era tida como meio de purificação da animalidade de uma natureza secreta do ser humano.
"A água e a navegação têm realmente esse papel. Fechado no navio, de onde não se escapa, o louco é entregue ao rio de mil braços, ao mar de mil caminhos, a essa grande incerteza exterior a tudo. É um prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das estradas: solidamente acorrentado à infinita encruzilhada. É o Passageiro por excelência, isto é, o prisioneiro da passagem. E a terra à qual aportará não é conhecida, assim como não se sabe, quando desembarca, de que terra vem. Sua única verdade e sua única pátria são essa extensão estéril entre duas terras que não lhe podem pertencer."
(Michel Foucault, em 'História da loucura na Idade Clássica')

Por Bruno Carrasco.

Referências:
BRANT, Sebastian. A Nau dos Insensatos. São Paulo: Octavo, 2010.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Trad.: José Neto. São Paulo: Perspectiva, 2017.
FRAYZE-PEREIRA, João. O que é Loucura. São Paulo: Brasiliense, 2002.
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