Foucault e o anarquismo - Salvo Vaccaro


Michel Foucault conhece certamente os intelectuais Etienne de La Boétie e Pierre Clastres, e um outro anarquista conhecido Noam Chomsky, com o qual teve uma conversação em 1971 em um colégio holandês (em Eindhoven) intermediado pelo anarquista Fons Elders.

É mais ou menos neste período, quando o anarquismo estava ligado à política da ilegalidade delinquêncial da segunda metade do século XIX, que Foucault terminou seu livro sobre a prisão: as polêmicas e as discussões desenvolvidas na primeira metade do século “serão despertadas pelo eco de resposta aos anarquistas quando, na segunda metade do século XIX, colocaram o problema político da delinquência tomando como ponto de ataque o aparato penal; quando pensaram poder reconhecer nela a forma mais combativa de recusa à lei; quando tentaram nem tanto heroicizar a revolta dos delinquentes como desconectar a delinquência da legalidade e ilegalidade burguesas que a haviam colonizado; quando quiseram restabelecer ou constituir a unidade política das ilegalidades populares”.

Foucault voltou ao tema do anarquismo em novembro de 1977, por ocasião da súbita extradição para a Alemanha do advogado francês Klaus Croissant, impedido de exercer sua profissão e acusado de cumplicidade com a RAF, refugiado na França por asilo político, preso e finalmente expulso depois do aparecimento dos cadáveres de Baader, Meinhof e companheiros.

Trechos do livro:

Foucault considerou diversas vezes o anarquismo durante o decorrer das aulas do primeiro semestre de 1976 dedicado ao tema: “Defender a sociedade.” Na aula de 7 de janeiro de 1976, sobre algumas lutas da época contra a justiça e os aparatos judiciários e psiquiátricos (Foucault, além de percorrer o caminho histórico do nascimento das prisões, estava pessoalmente engajado nos GIP - Grupos de Informação sobre as Prisões - e também estava ligado ao movimento da antipsiquiatria de Basaglia, Szasz, Cooper, Laing e outros).

A ligação Nietzsche - Foucault é determinada, entre outras coisas, por sua comum impostação metodológica de pesquisa filosófica, histórica e, em um sentido amplo, social, denominada genealogia. Esta última tenta descobrir as condições materiais e discursivas de uma certo evento em sua singularidade, individualizando a proveniência das “palavras” e das “coisas” inerentes a este evento (querendo-se parafrasear o título de um célebre livro de Foucault). 

Enquanto a dialética intui uma continuidade rompida entre o existente e a utopia, de tal forma que esta última alimentase da inversão da primeira, Nietzsche e Foucault acreditam ser oportuno cortar todo elo de continuidade para que o não-ainda-existente não seja prejulgado conservando elementos do presente.

Foucault pretende declarar a “morte do homem”, soberano centralizador metafísico: os sujeitos constituem-se no interior de relações de saber e poder prefixadas, que cada um encontra e herda, e das quais é necessário libertar-se sem que se tenha que reconstituir a mais primitiva posição de soberania centralizada para poder somente então dominar e filtrar qualquer processo social e cultural.

O individualismo reivindicado por Foucault não é, entretanto, político, mas ético. A possibilidade que cada um tem de traçar o trajeto da própria existência, não como elemento de uma estratégia política, que ao mesmo tempo substitui e enfraquece a violência bélica introduzindo lógicas distorcivas e dissuasivas, mas sim como obra de arte: a vida como criação estética individualizada que comunica, solidária e reciprocamente, as diferentes formas de cuidado de si não-hegemônicas.

De qualquer forma, as lutas do presente constituem o possível espaço de mudança, pois para Foucault são significativas as práticas que determinam uma ordem vigente. O percurso que vai do geral ao particular, típico das manifestações que aspiram alcançar o ápice do poder para promover a modificação da qualidade de vida, é drasticamente invertido por Foucault que dedica atenção específica à microfísica das relações de poder, cujo exercício atinge e atravessa indivíduos constituídos em sua materialidade, que seriam em outras condições potenciais vetores de dissonância dos discursos e práticas afirmados. 

E indubitavelmente a analítica do poder esboça mapas de relações de poder assimétricas, hierárquicas, reversíveis, biunívocas, que mais se assemelham a uma sensibilidade libertária (como mutação, por exemplo, do pensamento radical das mulheres) e servem para uma crítica, em linhas anarquistas da dominação.

Foucault não nos fornece uma teoria geral, já que acredita que o poder não consiste em uma substância possuída a ser utilizada no momento oportuno, mas sim em uma particular relação topológica, ou seja uma relação entre sujeitos com referência a um específico campo de possibilidades tanto materiais (práticas, comportamentos, vínculos normativos, etc.) quanto discursivas (idéias, valores, imaginários, etc.). A relação de poder assim constituída engloba elementos típicos do domínio moderno: anonimato, transversalidade, transferibilidade, integrabilidade, fascinação. Não há nenhuma garantia absoluta de isenção do exercício de poder, pois são as práticas em que cada um está imbuído que ditam a posição individual no campo de tensões tomado em consideração (família, escola, prisão, hospital, etc.). 

Torna-se importante, então, mudar comportamento, alterar as práticas, adotar estilos de vida diferenciados, subtrair-se ao grilhão disciplinar que regulamenta a existência singular e coletiva dos indivíduos nos vários e específicos âmbitos da vida cotidiana e institucional.

"Sem dúvida, nos dias de hoje, o objetivo principal não é o de descobrir o que somos, mas sim o de recusar aquilo que somos. Devemos imaginar e construir aquilo que poderíamos ser, para liberar-nos deste tipo de 'dupla ligação' política que são a individualização e a totalização simultânea das modernas estruturas de poder. A conclusão seria então que o problema político, ético, social, filosófico dos dias de hoje não é aquele de tentar libertar o indivíduo do Estado e das instituições estatais, mas tentar nos libertar tanto do Estado quanto do tipo de individualização a ele vinculada. Devemos promover novas formas de subjetividade recusando o tipo de individualidade que nos foi imposto por tantos séculos."
Michel Foucault, Perché Studiare il Potere, cit., p. 9-10 (tradução italiana ligeiramente modificada).


Referẽncia:
VACCARO, Salvo. Foucault e o Anarquismo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Achiamé, 2000.