O que é Contracultura - Carlos Pereira

O livro "O que é Contracultura", de Carlos M. Pereira, oferece uma introdução sobre a contracultura, que desafia os valores morais e os modos de vida estabelecidos. A Contracultura propõe novas maneiras de pensar, viver e se relacionar com o mundo e com as pessoas, utilizando uma linguagem de revolta e contestação, existencial e anárquica, visando transformar a consciência.

Conforme as palavras do próprio Carlos Pereira, a Contracultura é "um movimento social de caráter fortemente libertário, com enorme apelo junto a uma juventude de camadas médias urbanas e com uma prática e um ideário que colocavam em xeque, frontalmente, alguns valores centrais da cultura ocidental, especialmente certos aspectos essenciais da racionalidade veiculada e privilegiada por esta mesma cultura."

A Contracultura é um conjunto de manifestações culturais que busca novas formas de expressão para o indivíduo e para a realidade do cotidiano. Com um caráter libertário, desafia e se opõe aos valores centrais da cultura vigente, mantida pelas principais instituições das sociedades ocidentais.

O livro de Carlos Alberto M. Pereira oferece um panorama sobre a Contracultura, explorando a relação entre o empoderamento jovem, festivais como o Woodstock, artistas como Jimmy Hendrix, Beatles, Bob Dylan, Rolling Stones, o movimento de Maio de 68 na França, a Nova Esquerda e uma nova sensibilidade. Este livro é uma leitura fundamental para quem busca compreender e pensar sobre a Contracultura na história e na contemporaneidade.



Alguns trechos do livro:

O termo "contracultura" foi inventado pela imprensa norte-americana, nos anos 60, para designar um conjunto de manifestações culturais novas que floresceram, não só nos Estados Unidos, como em vários outros países, especialmente na Europa e, embora com menor intensidade e repercussão, na América Latina. Na verdade, é um termo adequado porque uma das características básicas do fenômeno é o fato de se opor, de diferentes maneiras, à cultura vigente e oficializada pelas principais instituições das sociedades do Ocidente.

Contracultura é a cultura marginal, independente do reconhecimento oficial. (...). Obedece a instintos desclassificados nos quadros acadêmicos.

Acostumamo-nos, através da educação, a ver na cultura que herdamos de nossos pais e antepassados uma entidade intocável, definitiva, que se apresenta diante de nós como parte da própria essência da realidade - algo "natural" como o Sol ou a Lua, ou o resultado de uma evolução que se diria "biológica" porque inevitável.

É evidente, porém, que não é assim.

Cultura é um produto histórico, isto é, contingente, mais acidental do que necessário, uma criação arbitrária da liberdade.

Não há cultura, a rigor (...), mas culturas, no plural, criadas por diferentes homens em diferentes épocas, lugares e condições, tanto objetivas quanto subjetivas. Elas expressam não a realidade em si, mas diferentes maneiras de ver essa realidade e de interpretá-la. São diferentes leituras do mundo e por nenhum critério pretensamente objetivo podemos afirmar que uma seja mais válida - ou mais "objetiva", "verdadeira", "científica", etc. - do que outra.

A compreensão do fenômeno da contracultura depende da erradicação desse preconceito, introjetado em todos nós desde a infância: o de que nossa cultura particular e suas formas específicas e limitadas são, de alguma maneira, superiores, ou melhores, ou mais objetivas, etc. do que quaisquer outras, pretéritas ou a inventar.

Esta é uma ilusão tenaz, amparada por todas nossas instituições - da universidade à política -, e o primeiro ato indiscutivelmente positivo e genuinamente revolucionário da contracultura foi o de desmenti-la.

A contracultura foi certamente propiciada pelas próprias doenças de nossa cultura tradicional. Tais doenças condicionaram seu surgimento, como um antídoto, ou anticorpo, necessário à preservação de um mínimo de saúde existencial, que passou a ser socialmente exigido pelo próprio instinto de sobrevivência de nossa vida em comum.

Considerando-se "saudável", o doente não procura médico nem remédio - e atribui seu sofrimento a uma fatalidade absurda e incompreensível. Essa condição caracteriza nosso cotidiano.

A contracultura surgiu do confronto entre a cultura, reconhecida como doença, e a visão juvenil, cujo instinto natural é para a saúde. A audácia dessa visão não pode ser considerada mera precipitação ingênua, pois funda-se, antes, num desencanto radical - atingido por saturação, maturidade - com o mundo tal como conhecemos.

As vertentes que confluíram, de naturezas aparentemente diversas, mas sublinhadas pelo denominador comum da intenção libertária.

Tratava-se, de fato, de um movimento de contestação que colocava frontalmente em xeque a cultura oficial, prezada e defendida pelo Sistema, pelo Estabilishment. Diante desta cultura privilegiada e valorizada, a contracultura se encontrava efetivamente do outro lado das barricadas. A afirmação e a sobrevivência de uma parecia significar a negação e a morte da outra.

...um certo espírito, um certo modo de contestação... um tipo de crítica anárquica que, de certa maneira, rompe com as regras do jogo...

Descrente do futuro e desencantada com o presente — uma sociedade e uma cultura que, segundo o consenso da época, estavam simplesmente "doentes" —, o que tentava criar era um mundo alternativo, underground, situado nos interstícios daquele mundo desacreditado, ou no que se acreditava ser o outro lado de suas muralhas. Rompia-se com praticamente todos os hábitos consagrados de pensamento e comportamento da cultura dominante, realizando-se uma espécie de "crítica selvagem" a esta mesma cultura e sociedade ocidentais.

Não se tratava da revolta de uma elite que, embora privilegiada, visasse uma redistribuição da riqueza social e do poder em favor dos mais humildes. Nem de uma "revolta de despossuidos". Ao contrário. Era exatamente a juventude das camadas altas e médias dos grandes centros urbanos que, tendo pleno acesso aos privilégios da cultura dominante, por suas grandes possibilidades de entrada no sistema de ensino e no mercado de trabalho, rejeitava esta mesma cultura de dentro. E mais. Rejeitavam-se não apenas os valores estabelecidos mas, basicamente, a estrutura de pensamento que prevalecia nas sociedades ocidentais. Criticava-se e rejeitava-se, por exemplo, o predomínio da racionalidade científica, tentando-se redefinir a realidade através do desenvolvimento de formas sensoriais de percepção.

Mas como se caracteriza essa sociedade em que se constitui e com que se defronta este poder jovem? Como ela se apresenta aos olhos daqueles que vão desafiá-la? Suas marcas mais fortes parecem ser uma indústria altamente avançada, aliada a uma razoável afluência, aliança que se traduz numa pauta de consumo sempre renovada e num sistema essencialmente massificante. Trata-se, na verdade, de uma sociedade tecnocrática voltada para a busca ideal de um máximo de modernização, racionalização e planejamento, com privilégio dos aspectos técnico-racionais sobre os sociais e humanos, reforçando uma tendência crescente para a burocratização da vida social. Tudo isto, por sua vez, apoiado e referendado pelo dogma da ciência, ou melhor, pela crença absoluta na objetividade do conhecimento científico e na palavra do especialista, o intérprete autorizado do discurso da tecnologia, da produtividade e do progresso.

Neste sentido, a tecnocracia — esta forma social acima apontada — se afirma como um imperativo cultural incontestável e indiscutível à cuja dominação boa parte da população mundial do final do século XX se rende sem muitas vezes ter ao menos a mais leve consciência deste fato. Diante de um tal sistema, altamente repressivo e massificante, uma das características essenciais de toda a contestação da juventude vai ser a ênfase na afirmação da individualidade.

De ambos os lados do Atlântico sopravam também novos ventos, que evidenciavam a tentativa de renovação por parte do próprio pensamento teórico crítico, de esquerda, diante das novas contradições surgidas no período do pós-guerra e diante do tipo de organização e vida social que vinha se evidenciando naquelas sociedades industriais avançadas.

Não apenas nos Estados Unidos, mas em todos os lugares onde floresceu, a cultura jovem dos anos 60 foi extremamente sensível e simpática a toda e qualquer movimentação de grupos étnicos ou culturais que se vissem nessa posição de marginalidade ou exclusão diante das vantagens e promessas da sociedade ocidental.

Nas palavras de Luís Carlos Maciel, "a guitarra elétrica, em Jimmy Hendrix, não é apenas um novo som: é uma nova experiência existencial que exige, para que se estabeleça uma comunicação efetiva, uma alteração profunda na própria maneira de viver do ouvinte, nos próprios valores que norteiam seu comportamento e no seu próprio sistema nervoso".

Principalmente durante a segunda metade da década de 60, os grandes acontecimentos musicais da contracultura foram os festivais. Reunindo um número enorme de grupos, compositores e intérpretes — e, obviamente, um público gigantesco —, esses happenings musicais eram uma ocasião única para o encontro daqueles que, às vezes desesperadamente, tentavam criar um mundo novo que fugisse aos limites do Sistema.

No grande rito da contracultura, que o rock ajudava a encenar, um grupo tinha um papel absolutamente fundamental: eram os hippies. Com seu mundo psicodélico, seus cabelos agressivamente compridos, suas roupas coloridas e exóticas, enfim, com seu ar freak (estranho, extravagante), eles começaram a encher as ruas dos Estados Unidos, ou melhor, da Califórnia, já desde os primeiros anos da década de 60. E não é preciso dizer que, de lá, eles começaram a se espalhar pelo mundo inteiro, numa viagem longa e sinuosa. Era o flowerpower que começava a ganhar seu lugar ao sol, com o aval de nomes nada desprezíveis como Andy Warhol, Ginsberg, Thimothy Leary, Alan Watts, Mc-Luhan, Marcuse e tantos outros.

O final dos anos 50 e começo dos 60, nos Estados Unidos, foram especialmente movimentados. A descrença no liberalismo — visto, cada vez mais, como um mito, uma retórica que só protegia interesses —, aliada ao crescente questionamento dos "benefícios" da sociedade industrial, constituía o pano de fundo das primeiras reivindicações em torno dos direitos civis. O acirramento das lutas raciais, a crescente corrida armamentista e o início da guerra do Vietnã, por volta de 1963, vinham se acrescentar a este clima de descrédito e descontentamento.

São desta época as grandes marchas pacifistas contra a guerra ou pelos direitos do cidadão, as passeatas hippies com seus slogans alegres, sua música, suas cores e seus toques de orientalismo e os sit-ins dos jovens estudantes de universidades americanas e européias. Aumenta, nos Estados Unidos, a recusa ao pagamento de impostos, por parte daqueles que discordavam do destino dado pelo governo ao dinheiro público (guerra do Vietnã, armas nucleares etc). Cresce a resistência à prestação do serviço militar, ao alistamento e embarque para as frentes de combate, chegando-se, até mesmo, à queima de cartões de recrutamento, numa clara demonstração do repúdio dos jovens norte-americanos à guerra do Vietnã.

Assim vivia o conturbado mundo dos anos 60, cheio no entanto de muita fé e esperança no presente, ou mesmo num futuro bastante imediato. E é nele que se insere a grande utopia do movimento hippie da construção, no mundo aqui e agora, do seu paraíso de paz e amor. Para tanto, era fundamental que eles conseguissem escapar, de algum modo, aos limites da sociedade e da cultura ocidentais. E este era, na verdade, o sentido de sua filosofia do drop out — expressão que literalmente significa “cair fora”. Para os hippies, “cair fora” dessa camisa-de-força ocidental significava ganhar um outro lugar, fugindo então simultaneamente ao cerco do espaço físico, institucional e lógico deste mundo ocidental, é por aí que se pode entender melhor os três grandes eixos de movimentação que marcavam sua rebelião — da cidade, a retirada para o campo; da família para a vida em comunidade; e do racionalismo cientificista para os mistérios e descobertas do misticismo e do psicodelismo das drogas.

Para a opinião pública de classe média, são pessoas marginais, na sua maioria viciadas em drogas. Para eles próprios, aquela nova forma de vida significava a fuga da máquina e uma volta à natureza, vivendo do próprio trabalho, quase sempre manual.

Nesta sua tentativa de inventar uma nova maneira de viver, os hippies concentravam sua energia revolucionária especialmente no questionamento da repressão internalizada em cada um, na busca de si mesmo e do significado da existência, enfim, grandes “viagens”, por mais abstratos que estes objetivos possam parecer.

Fundamentalmente, o que se buscava eram novas possibilidades de apreensão da realidade, e tanto o misticismo quanto a droga constituíam-se numa forma de oposição ao racionalismo dominante nas sociedades tecnocráticas. Racionalismo este calcado sobre o modo de conhecer da Ciência, ou seja, sobre a própria estrutura do pensamento científico que, como tal, permite, ao mesmo tempo que impõe, uma determinada percepção da realidade. Assim, além do prazer que a droga é capaz de proporcionar através de seus efeitos, o que a tornava especialmente atraente no contexto da contracultura era o caráter "demolidor" daquela experiência em termos de certas estruturas de pensamento.

Este era também o sentido do lúdico ou do mágico para a contracultura — uma nova forma de aproximação do real. Já no caso das religiões orientais, que tinham tanto prestígio junto à juventude rebelde dos anos 60, era toda uma outra concepção do universo que estava em jogo, toda uma outra maneira de encarar a natureza ou o corpo, por exemplo. E estes dados as transformavam em sistemas de pensamento extremamente questionadores e polêmicos quando postos frente à visão de mundo dominante no Ocidente.

Desta forma, o homem novo que a contracultura tentava construir pressupunha efetivamente um novo modo de conceber e de se relacionar com o mundo à sua volta, nas mais diferentes áreas do seu cotidiano, exigindo portanto o surgimento de uma nova consciência ou de uma "nova sensibilidade".

Roberto Muggiati afirma o seguinte sobre o importante congresso de antipsiquiatria realizado em Londres, no ano de 1967: "No verão de 1967, o rock é um dos assuntos estudados em Londres no congresso Dialética da Libertação, organizado pelo psicanalista existencial R. D. Laing e seus colegas da ‘antipsiquiatria’, num esforço para conciliar libertação social e libertação psíquica. São grupos da Nova Esquerda, psicanalistas e sociólogos que debatem, procurando dar forma a uma 'esquerda visionária' e fundir a política radical com a política do êxtase".

De um lado, hippies, yippies, negros e uma infinidade de minorias etnoculturais que se organizavam e, de outro, um novo pensamento de esquerda que tentava se ajustar às transformações e à complexidade das sociedades industriais. Era a Nova Esquerda, que vinha se organizando desde o começo dos anos 60. Um de seus frutos no interior do movimento estudantil foi a SDS (Students for a Democratic Society), a maior organização estudantil dos Estados Unidos, com forte presença em vários países europeus, fundada por volta de 1962.

Por sua vez, este discurso crítico que o movimento estudantil internacional elaborou ao longo dos anos 60 visava não apenas as contradições da sociedade capitalista, mas também aquelas de uma sociedade industrial, tecnocrática, nas suas manifestações mais simples e corriqueiras. Nas palavras de um manifesto afixado à entrada principal da Sorbonne durante o Maio de 68: “a revolução que está começando questionará não só a sociedade capitalista como também a sociedade industrial. A sociedade de consumo tem de morrer de morte violenta. A sociedade da alienação tem de desaparecer da história. Estamos inventando um mundo novo e original. A imaginação está tomando o poder”.

Dentre os inúmeros projetos de transformação social, mais ou menos radicais, mais ou menos utópicos, que os anos 60 viram surgir, a contracultura certamente tem um lugar importante. E isto não apenas devido ao seu poder de mobilização — que não foi nada pequeno —, mas, principalmente, pela natureza das idéias que colocou em circulação, pelo modo como as veiculou e pelo espaço de intervenção crítica que abriu. Não eram apenas novos atores que surgiam na cena do já tumultuado debate políticocultural internacional. Era todo um novo discurso, com marcas de uma extrema complexidade, que surgia, possibilitando o exercício mais sistemático de um tipo de crítica social que, até aquele momento, não estava disponível.

Tanto nos Estados Unidos quanto na Europa Ocidental, o que chamava a atenção nesta onda de revolta estudantil que marcou a década de 60 era a sua originalidade em termos da abertura de novos espaços de luta política e da elaboração de uma nova linguagem crítica.


Referência:
PEREIRA, Carlos Alberto. O que é Contracultura. São Paulo: Brasiliense, 1983.
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