Introdução a Foucault - Edgardo Castro

O livro 'Introdução a Foucault', escrito por Edgardo Castro, oferece uma excelente introdução sobre a filosofia de Michel Foucault, apresentando as primeiras obras do filósofo, abordando temas como os problemas epistemológicos na psicologia, a história da loucura, passando pelo olhar médico e a arqueologia dos saberes.

Após um breve percurso sobre as ciências humanas, o autor entra em temáticas como a vontade de verdade, o panoptismo, a sexualidade, o governo de si, o poder pastoral, o cuidado de si e a parrésia. O livro apresenta alguns dos principais pontos da filosofia de Foucault, possibilitando uma boa introdução sobre o filósofo.


Fragmentos do livro:

Foucault se orienta em torno de um problema que constituía, na década de 1950, um dos grandes temas de discussão: a problemática das ciências humanas e suas relações com a filosofia.

Desde seus primeiros escritos, a grande pergunta que domina todo o pensamento foucaultiano é, em definitivo, a seguinte: como foi possível o que é? Essa possibilidade é sempre histórica, não é a expressão de nenhuma necessidade; as coisas poderiam ter sido de outro modo e também podem ser de outro modo. Por isso, suas investigações estão marcadas por uma pegada histórica e, a um tempo, tanto política como ética.

Em 1946 logrou finalmente ingressar na École Normale, onde frequentou as lições de Maurice Merleau-Ponty e Louis Althusser.

Depois de obter licenciaturas em filosofia e psicologia e diploma de especialização em psicopatologia, e enquanto atuava como professor de psicologia na Universidade de Lille, entre 1954 e 1957, Foucault publica Doença mental e personalidade, seu primeiro livro.

Para Foucault, o desenvolvimento da psicologia entre 1850 e 1950 foi marcado pela exigência, herdada do Iluminismo, de adequar-se ao modelo das ciências naturais e, ao mesmo tempo, pelas contradições desse projeto. Por um lado, a necessidade de aplicar um método de conhecimento que fundamente seus resultados em dados objetivos, como o fazem a física ou a biologia, e, por outro, a impossibilidade de levá-lo a cabo. Com efeito, à diferença do que sucede com o conhecimento da natureza, a psicologia não nasce das regularidades, mas das contradições da vida humana. A psicologia da adaptação surge, por exemplo, do estudo das formas de inadaptação; a da memória, do esquecimento e do inconsciente; a da aprendizagem, do fracasso escolar. O homem não é, nesse sentido, uma realidade como as outras.

Por isso, afirma Foucault, dado que as contradições são "o que há de mais humano no homem" (FOUCAULT, 1994, t. I, p. 137; t. I, p. 151), a psicologia deve decidir-se entre intentar superá-las ou assumi-las como as formas empíricas da ambiguidade que define o ser do homem. Se opta por esta última alternativa, deve abandonar então o projeto de uma ciência objetiva e orientar-se para a filosofia.

Depois de descrever as diferentes formas de patologias psíquicas e de mostrar as deficiências das aproximações cientificistas que pretendem explicar o psíquico a partir do biológico, Foucault identifica na angústia o núcleo da doença mental, e também aqui sustenta a necessidade da análise do sentido e da significação das condutas patológicas. Desse modo, os desenvolvimentos da filosofia da existência (herdeira de Husserl e Heidegger) e da psicanálise aparecem como solidários.

Entretanto, na opinião de Foucault, nem a psicanálise, nem a filosofia da existência, nem sua combinação resultam finalmente suficientes para compreender a doença mental porque, para além de suas formas de manifestação, há doença mental quando “a dialética psicológica do indivíduo não encontra seu lugar na dialética de suas condições de existência” (FOUCAULT , 1954, p. 102). A doença mental ou, retomando um termo clássico, a alienação mental não é uma espécie de substância que cristaliza em torno de si as condutas mórbidas – como supunham, seguindo o modelo da patologia orgânica, as primeiras formas de psicopatologia –, mas uma consequência da alienação social. Por essa razão, embora a psicologia possa descrever a dimensão psicológica das doenças mentais, suas condições de aparição só podem explicar-se a partir das formas concretas da alienação histórica.

Foucault sustenta, com efeito, que a psicanálise psicologiza o real, pois “obriga o sujeito a reconhecer em seus conflitos a lei sem regra de seu coração, para evitar ler neles as contradições na ordem do mundo” (FOUCAULT, 1954, p. 109).

Percorrendo esses textos, podem ser encontrados numerosos elementos das correntes de pensamento que marcaram a formação universitária de Foucault nesse tempo: o marxismo, a psicanálise e a fenomenologia existencial, das quais paulatinamente irá se distanciando, até assumir posições críticas a respeito de cada uma delas e proibir, inclusive, a reedição francesa de seu primeiro livro. Segundo o próprio autor, a leitura de Nietzsche, Georges Bataille e Maurice Blanchot foi determinante nesse distanciamento.

A história da loucura na Idade Clássica é, com efeito, uma história da desrazão, de uma razão que não é como a dos outros, de uma racionalidade não razoável.

No registro das práticas sociais, Foucault aborda então, em primeiro lugar, a descrição da circulação da loucura, cuja figura maior está representada por essas naves, com os loucos embarcados, que percorriam alguns dos mais importantes rios da Europa. Passa depois à grande reclusão, o espaço no qual se recluiu quem já não tinha lugar na sociedade burguesa europeia dos séculos XVII e XVIII: os loucos, os indigentes, os vagabundos, os sodomitas, os blasfemos, as prostitutas, os libertinos, etc. E, finalmente, o relato chega até o momento em que surge o asilo psiquiátrico como o lugar de internação reservado aos doentes mentais. A cada uma dessas experiências sociais corresponde, no registro dos saberes (a filosofia, o direito, a medicina) ou da literatura, determinada concepção da loucura. Ela foi, para o Renascimento, a expressão de outro mundo, linguagem cósmica e trágica; para a Idade Clássica, desrazão; e para a Modernidade, doença mental.

No Renascimento, a nave dos loucos era tanto um tema pictórico e literário como o lugar em que se levava a cabo uma prática social. Efetivamente, os loucos eram excluídos dos centros urbanos e embarcados para navegar sem rumo. Às vezes, eram acompanhados até os limites da cidade, onde se celebravam seus funerais e se distribuíam suas heranças. A água, lugar de uma peregrinante deriva e meio de purificação, somava seu próprio simbolismo. As imagens dessas naves, representadas nas pinturas da época, como as de El Bosco, falam da animalidade como natureza secreta do homem. Na literatura, em contrapartida, as imagens da loucura expressam sobretudo as debilidades da razão humana, seus sonhos e ilusões, e desse modo se tornam sátira, como em Erasmo de Rotterdam.

O ano 1656 constitui, para Foucault, data emblemática na história da loucura: é fundado o Hospital Geral de Paris. Propriamente falando, não se trata nem de estabelecimento médico nem de instituição judicial, mas de instância da “ordem monárquica e burguesa que se organiza na França por essa época” (FOUCAULT , 1999a, p. 73; p. 57).

no Hospital Geral, de todos aqueles que perturbaram ou pudessem perturbar a ordem. A ideia se estendeu rapidamente a cada uma das cidades capitais de província do Reino de França e, com a criação de instituições similares na Inglaterra e na Alemanha, a prática da reclusão adquiriu finalmente imensões europeias.

Em uma sociedade animada pela ética do trabalho e pela exigência de ganâncias, a pobreza e suas causas deixam de estar tingidas pelos valores religiosos e místicos de outrora, e se convertem em vício moral.

A Idade Clássica se constitui, então, em função de dupla exclusão que desenhou o perfil próprio da sociedade burguesa e da razão moderna: por um lado, a dos internados no espaço do Hospital Geral e, por outro, a da loucura no caminho cartesiano da dúvida. Desse modo, sustenta Foucault, a loucura “entra em um tempo de silêncio do qual não sairá por muito tempo. Foi despojada de sua linguagem e, embora se pudesse continuar falando dela, a ela foi impossível falar sobre si mesma” (FOUCAULT , 1997b, p. 82, p. 79).

O louco é aquele cuja linguagem, cujos comportamentos e cujos gestos não são como os dos demais.

Posso imaginar que estou morto, mas isso em si não faz de mim um louco, porque pode tratar-se de um sonho. Porém se, estando desperto, imagino que estou morto e extraio as consequências que se seguem disso – que estou imóvel ou que não necessito comer –, então, estou louco. A desrazão é esse sonho das pessoas despertas, cegueira que obscurece a relação do homem com a verdade. Essa razão envolta nos erros da imaginação e da fantasia constitui, propriamente falando, o delírio. A desrazão não é, então, doença do espírito ou da alma, mas do corpo e da alma conjuntamente, da maneira em que se comunicam. Por isso, para a Idade Clássica, a paixão, entendida como o movimento irracional da razão que se origina pela influência do corpo sobre o espírito, é finalmente a causa mais constante e obstinada da loucura.

À pergunta acerca de como definir a loucura, a medicina da época respondeu com uma série de noções: a demência, impossibilidade de ter acesso à verdade; a mania, delírio parcial sem febre; a melancolia, delírio duradouro colorido de angústia e tristeza; a histeria, irritabilidade geral do corpo feminino, e a hipocondria, do masculino.

a experiência da loucura na segunda metade do século XVIII e, portanto, das condições que fizeram historicamente possível a psiquiatria e a psicologia, a saber, da maneira em que o homem se converteu em uma espécie psicologizável. É narrado, em definitivo, o nascimento do homo psychologicus.

Por outro lado, as condições econômicas mudaram. Já não se necessita fazer frente ao desemprego como modo de controlar a população ociosa, mas, pelo contrário, trata-se de remediar a falta de mão de obra nas terras conquistadas e nas zonas rurais. Novamente se modifica a sensibilidade social a respeito da pobreza. A prática de recluir os indigentes é percebida, então, como desaproveitamento de mão de obra necessária e que, também, consome pouco. Começam então a se desfazer os nexos que vinculavam a loucura, a desrazão e a miséria. Porém, a mudança não só se produz no exterior; também dentro dos muros a experiência da reclusão sofre suas próprias modificações. Entre os reclusos, os que não estão loucos ou não são considerados como tais se negam a ser confundidos com eles.

Nesse novo contexto, na segunda metade do século XVIII, a relação entre loucura e reclusão se reformula e aprofunda, e conduz finalmente à experiência da loucura como doença mental. Por um lado, aparecem espaços de internação reservados aos loucos. Será a justiça, doravante, a encarregada de decidir os que devem ser recluídos; para isso, assimilará os valores da sociedade burguesa às normas da saúde e da razão. E, nessas instituições reservadas aos loucos, fará seu ingresso, rodeada de novos poderes, a figura do médico.

Aos que têm as faculdades mentais alteradas e, portanto, não podem fazer bom uso de sua liberdade, a sociedade tem direito a limitá-la, alienando sua vontade na do médico. Desse modo, a reclusão constrói a figura do alienado e, sobre essa base, vinculando a dimensão exterior da exclusão com a dimensão interior da culpabilidade, a loucura termina convertendo-se em doença mental.

Para compreender essas conclusões de Foucault, resulta necessário deter-se em suas análises dos chamados reformadores da psiquiatria, Samuel Tuke e Philippe Pinel, das casas de retiro do primeiro e do asilo do segundo.

O silêncio, o reconhecimento da própria doença e o submetimento ao juízo moral e científico da autoridade eram apresentados como meios de cura. Porém, para além dessas diferenças, as táticas adotadas em ambas as instituições – desafios, ameaças, humilhações, castigos, privação de alimentos – constituíam uma estratégia de infantilização e culpabilização do louco.

Na leitura foucaultiana, como vemos, mais que ao advento de nova forma de humanismo e, por conseguinte, à humanização das condições de internação dos loucos, o nascimento da psiquiatria está ligado, sobretudo, a uma reelaboração das formas de sujeição. No asilo, a loucura está livre, sem correntes, porém em espaço mais fechado e restrito. É liberada de seu parentesco com o mal e o crime, mas resta presa nos mecanismos do instinto e do desejo, assim como a vontade do louco fica alienada na do médico. A loucura, então, rompe o silêncio no qual sumira durante a Idade Clássica, volta a falar aos ouvidos dessas figuras nas quais a ordem social se disfarça de médico, como as de Tuke e Pinel, para encontrar, nos mecanismos do desejo e nos determinismos do corpo, o ponto de inserção da culpabilidade.

Foucault analisa agora os dispositivos do poder disciplinar como produtores de enunciados psiquiátricos.

O surgimento das práticas psiquiátricas já não se explica, então, nem pela influência do poder estatal nem pela reprodução do modelo familiar, mas pela formação de forma específica de poder, nem estatal nem familiar; o poder disciplinar, cujos mecanismos serão descritos, sobretudo, em Vigiar e punir.

O homem, o sujeito das ciências humanas, foi inventado – segundo a expressão de Foucault – no final do século XVIII, não no início do XVII, quer dizer, na época de Kant, não na de Descartes.


Fonte:
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Trad.: Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2014.