O que é Loucura?

(Autorretrato, Edvard Munch, 1926)

Descrever, conceituar ou definir a loucura é algo extremamente difícil e complexo, por conta de suas distintas manifestações e de sua própria inconstância, talvez seja inclusive um intuito permanentemente incompleto e inacabado. Nem sempre a loucura é uma condição oposta à normalidade ou à racionalidade, mas algo que pode ocorrer na própria normalidade e racionalidade.

A loucura pode ser entendida de diversas maneiras: como uma perda de consciência de si, de sua existência e lugar no mundo; como uma doença, um estado mental decorrente de uma alteração do cérebro; um desequilíbrio ou desvio com relação às normas sociais; dificuldades emocionais decorrentes de um contexto familiar ou social problemático; uma fuga ou evitação de seus compromissos; ou uma tomada de consciência de si de maneira mais profunda.

É importante diferenciar a loucura resultante de alterações cerebrais, da loucura por conta de dificuldades emocionais. Uma coisa é constatar uma alteração ou limitação nos modos de ser de uma pessoa por conta de um dano cerebral, como no caso de uma síndrome; outra questão é constatar alterações no humor, dificuldades em lidar com as emoções ou para se expressar.

Podemos encarar a loucura como uma experiência corajosa de recusa do mundo instituído, como uma forma de saber e que propõe diferentes maneiras de entender o mundo e de se colocar neste, que fogem do padrão estabelecido de um local ou período. Mas também podemos entender a loucura como aquele que se torna perigoso para os outros ou para si mesmo, e que necessita de um tratamento e um ajuste para viver em sociedade.
"O que é um autêntico louco? É um homem que preferiu enlouquecer, no sentido que socialmente se entende a palavra, em vez de trair uma certa ideia superior de honra humana. Eis por que a sociedade condenou ao estrangulamento em seus manicômios. Pois o louco é aquele que a sociedade não quer ouvir e que é impedido de enunciar certas verdades insuportáveis."
(Antonin Artaud)
Portanto, há que se colocar em questão o entendimento sobre a loucura, que relaciona esta unicamente à patologia, que a entende como algo a ser "tratado", "ajustado" e "formatado", de acordo a um "padrão" ou "norma". É preciso ir além desta compreensão de loucura, de modo a captar suas distintas formas de expressão e inclusive sua possível denúncia sobre os problemas e limitações do mundo em que vivemos.

Segundo Foucault, somente a partir do século XIX a loucura passou a ser concebida como "doença mental", entendida como resultante de uma alteração fisiológica cerebral. Por conta disso, suas estruturas e manifestações foram classificadas e descritas por meio de uma nosografia, categorizando suas expressões em termos como "histeria", "transtorno obsessivo compulsivo", "mania", "depressão", "fobia", "paranoia", etc.
"Foi numa época relativamente recente que o Ocidente concedeu à loucura um status de doença mental."
(Foucault, em 'Doença mental e psicologia')
Porém, essas categorizações são muito frágeis e questionáveis. Por exemplo, ninguém até hoje criou uma categoria de transtorno mental para a pessoa que muito se dedica ao trabalho, ou que não consegue perder um capítulo da novela, ou mesmo para aquela pessoa que não perde a partida de futebol de seu time, ou que compra sempre os mesmos produtos e vai sempre nos mesmos lugares.

A definição de loucura é situada, muitas vezes, como o antônimo de normalidade. A palavra "normal" se origina de 'norma', em latim, que significa "esquadro", 'normalis' corresponde algo que "não se inclina nem para a direita nem para a esquerda", que é "perpendicular", se mantendo a "meio termo". A norma serve, portanto, para endireitar, para não se tender para um ou outro lado. Neste sentido, a normalização se coloca ao ajuste de uma existência que se difere de uma norma. 
"(...) o sentido, a função e o valor de uma norma nascem apenas do fato de existir algo, estranho a ela, que não corresponde à exigência a que ela obedece. Isto quer dizer que uma norma só vem a ser norma, exercendo a sua função normativa ou de regulação, mediante a antecipação da possibilidade de sua infração."
(Frayze-Pereira, em 'O que é loucura')
A normalidade é portanto definida a partir de um projeto de normatividade, que estabelece o normal em contraposição ao anormal. Deste modo, o anormal só existe partindo da existência do normal, ou seja, são conceitos inseparáveis, o que torna impossível a concepção da anormalidade ou da loucura independente de uma espécie de normalidade.

Neste sentido, a noção de loucura ou anormalidade depende totalmente do contexto social no qual se está inserido. Uma pessoa pode aparecer como "messias" num dado período e local, e ser aceito como tal, mas num outro momento ou circunstãncia pode ser visto como louco e ser internado para um tratamento. Aliás, muito do que hoje entendemos por loucura ou doença mental, não era entendido deste modo alguns séculos atrás.
"A doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal."
(Foucault, em 'Doença mental e psicologia')
Cada cultura seleciona uma série de condutas e modos de ser tidos como normais e adequados, e coloca todo o restante como anormal ou patológico. Assim, cada sociedade estabelece um padrão do que é aceito e do que deve ser reprimido ou ajustado. A doença mental, portanto, pode ser tão variável quanto são os costumes de um grupo social.

A etnopsiquiatria integra a dimensão cultural do sofrimento psíquico, entende que cada agrupamento humano elabora seus próprios parâmetros do que seja loucura. Deste modo, os modelos que determinam a loucura são entendidos muito mais como sociais e históricos do que biológicos ou cerebrais, isso significa que o que definimos por "loucura" é muito mais uma criação cultural e histórica, do que uma determinação fisiológica.
"A loucura é muito mais histórica do que se acredita geralmente, mas muito mais jovem também."
(Foucault, em 'Doença mental e psicologia')


Por Bruno Carrasco.

Referências:
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 2000.
FRAYZE-PEREIRA, João. O que é Loucura. São Paulo: Brasiliense, 2002.