Nietzsche e suas críticas à moral


A moral é um dos temas mais presentes na filosofia de Friedrich Nietzsche (1844-1900), que analisou essa temática a partir de um viés crítico e questionador, examinando e reavaliando as crenças tão solidamente constituídas em nossa sociedade ocidental, percebendo inclusive uma relação entre a moral e a verdade.

Na filosofia, a moral costuma ser entendida como um conjunto de regras que mantêm costumes e modos de ser e de se relacionar de um grupo de pessoas. Difere-se da ética, com um caráter mais individual, relacionado com os modos de agir de cada pessoa.

Nietzsche constatou que a moral era um tema muito pouco questionado na filosofia em seu tempo, sendo vista geralmente como algo inquestionável, superior e eterno. Portanto, ele propôs questionar a moral e os elementos que a sustentam, colocando questões como: o que é a moral? A quem serve a moral? Por que ela não pode ser questionada?
"Até agora, portanto, ninguém examinou o valor do mais célebre dos medicamentos, que se chama moral: isso requer, antes de tudo - pô-lo em questão. Muito bem! Este é justamente o nosso trabalho."
(Nietzsche, em 'A Gaia Ciência', §345)
Além destas questões, ele colocou também em questão o suposto valor metafísico da moral, ou seja, o entendimento da moral como algo eterno, atemporal e, até mesmo, "sobre-humano". Assim, as regras morais não passam de criações humanas, demasiado humanas, não há nada de eterno, sagrado ou superior, e essas regras são mantidas pelos costumes e pelo não questionamento.
"Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado em questão - para isto é necessário um conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram."
(Nietzsche, em 'Genealogia da Moral', §6)
Segundo Nietzsche, a moral é uma criação humana, que não existe por si mesma, mas que corresponde a um conjunto de costumes e valores que fazem parte de um momento e um período específico, mantidos por uma série de pessoas que aderem a esta e a reproduzem mais pelo hábito e pela submissão, do que pelo valor que ela tenha, ou por suas vantagens.

Após estabelecida, a moral se apresenta como uma norma inquestionável para um determinado grupo de pessoas, que valoriza inclusive a obediência a seus preceitos e o não questionamento, para sua própria manutenção. A moralidade, segundo Nietzsche, corresponde a internalização de regras, costumes e modos de vida de um certo momento e local, e seu não questionamento.
"(...) a moralidade não é outra coisa (portanto, antes de tudo, nada mais) senão a obediência aos costumes, sejam eles quais forem; ora, os costumes são a maneira tradicional de agir e de avaliar.”
(Nietzsche, em ‘Aurora’, §9)
A moral exige uma negação das diferenças, para manter suas prerrogativas protegidas, por isso qualquer um que a questione ou desobedeça é tido como um infrator. Os valores e as normas morais impedem que novos e diferentes valores apareçam. Neste sentido, a moralidade impede o surgimento de novos e melhores costumes, pois ela torna alguns costumes como obrigação, tornando a vida guiada por uma submissão inquestionável.

Porém, para Nietzsche, toda moral pode ser questionada, ou seja, o valor dos modos de vida podem ser questionados. Segundo ele, a moral nos induz a uma vida que nos impossibilita criar, experimentar, improvisar e experienciar novos valores. A moral se transforma numa conservação do que foi estabelecido, mantendo as coisas tal como estão.
"O costume representa as experiências dos homens passados acerca do que presumiam ser útil ou prejudicial - mas o sentimento do costume (moralidade) não diz respeito àquelas experiências como tais, e sim a idade, santidade, indiscutibilidade do costume. E assim este sentimento é um obstáculo a que se tenham novas experiências e se corrijam os costumes: ou seja, a moralidade opõe-se ao surgimento de novos e melhores costumes: ela torna estúpido.”
(Nietzsche, em ‘Aurora’, §19)
Com o tempo, a moral torna a experiência de vida embrutecida, enfraquecendo e incapacitando as pessoas de criarem outros modos de vida. O indivíduo moral sente medo de fazer algo que seja diferente da moral, e acaba mantendo os valores como estão, com receio de distintos modos de vida. A conservação da moral a torna inquestionável e superior, tendo como intuito proteger tal moral.

Ao mesmo tempo que ela nos protege, também nos limita. Os modos de vida poderiam ser diferentes, mas a moral estabelecida suprime as possíveis dissidências. Tudo o que difere os valores morais é tido como uma ameaça à moral, passa a ser visto como "mau". O que é imprevisível, inusitado, que se diferencia da moral vigente e de sua ordem estabelecida, passa a ser entendido como algo que deve ser evitado.
"(...) quanto menos a vida é determinada pelos costumes, menor é o cerco da moralidade. O homem livre é imoral, porque em todas as coisas quer depender de si mesmo e não de uma tradição estabelecida: em todos os estados primitivos da humanidade, 'mal' é sinônimo de 'individual', 'livre', 'arbitrário', 'inabitual', 'imprevisto', 'imprevisível'."
(Nietzsche, em 'Aurora', § 9)
Nietzsche criticou a moral, sobretudo a cristã ocidental, não com o intuito de eliminar as regras morais, mas fazendo uma crítica ao seu caráter metafísico, universal e inquestionável, nos convidando a refletir sobre o que nos faz bem e o que nos faz mal numa moral, ao invés de apenas a seguir cegamente. Ele propõe olharmos para o que foi negado pela moral, para podermos reavaliar o valor desta moral, revalorando os modos de ser por ela estabelecidos.

A moral, de acordo com Nietzsche, pode ser entendida como um costume, que num dado momento pode ter sido útil, mas que depois passa a ser utilizada como uma norma de conduta a ser seguida, sem questionamentos. Colocar em questão os valores morais possibilita outros modos de vida, reavaliando o valor do que fazemos ou deixamos de fazer, possibilitando avaliar como cada atividade reverbera em nós.

O filósofo constatou que não há uma ordem moral no mundo que esteja além da própria existência, que diga ou estabeleça o que podemos ou o que não podemos ser. Toda moral é apenas um conjunto de valores que indica modos de ser no mundo, e que adotamos, ou não. Porém, do mesmo modo que adotamos certos modos de ser, podemos também adotar outros.
"Ir de encontro de tudo o que é estrangeiro e problemático na existência, tudo o que até agora foi exilado pela moral, tudo o que foi escondido pelos filósofos. A mentira do ideal foi até agora a blasfêmia contra a realidade, com ela a humanidade se tornou, até em seus mais profundos instintos, mentirosa e falsa. Derrubar ídolos, isso sim é que faz parte de meu ofício."
(Nietzsche, em 'Ecce Homo')
Nietzsche não propõe inverter os valores morais, mas possibilitar uma revisão e uma reavaliação deles. Segundo ele, um indivíduo se torna mais livre a partir do momento em que começa a questionar a moral. Algo que faz bem para uma pessoa pode não fazer bem para outra, assim como uma coisa que faz mal a uma pessoa pode fazer bem a outra.

Conforme tomamos contato com nossas experiências, podemos buscar novos modos de vida, que sirva para nosso corpo e nossas medidas. Podemos, então, encontrar e criar de outras maneiras de ser que sejam mais saudáveis para o nosso corpo, que amplie nossas potencialidades e que aumente nossa disposição para a vida, ao invés de nos sentir equivocados, culpados e inferiores.


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora. São Paulo: Escala, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. Porto Alegre: L&PM, 2003.