Breve História da Loucura

A Balsa da Medusa, Jean Louis Théodore Géricault, 1819

A história e a cultura nos oferecem referências positivas e negativas sobre a loucura, isso nos leva a refletir sobre a linha tênue que diferencia a loucura da sanidade. Temos uma ideia quase romântica da loucura, associada à genialidade artística e/ou intelectual. A figura do louco também aparece como alguém descontrolado e perigoso, concepção que deu origem à psiquiatria, no século XIX.

Michel Foucault (1926-1984) foi um filósofo francês compreendeu que os modos de entender e lidar com a loucura não foram os mesmos no decorrer do tempo. Em 1961, ele publicou sua tese de doutorado, ‘História da loucura’, onde descreve como os saberes e as disposições sobre a loucura se transformaram no tempo, entendendo que a loucura não é um fenômeno natural, nem uma "doença".

Que mudanças fizeram com que a "loucura" passasse a ser entendida como 'alienação mental', 'doença mental', ou 'patologia'? De acordo com Foucault, o entendimento sobre a loucura se transformou no decorrer do tempo, tendo forte influência não apenas da ciência, mas sobretudo das relações entre saberes e poderes, das crenças, dos costumes, dos rituais e do regime político de cada época.
"Foi numa época relativamente recente que o Ocidente concedeu à loucura um status de doença mental."
(Michel Foucault, em 'Doença mental e psicologia')
Na antiguidade, acreditava-se que as doenças e moléstias mentais eram causadas por ações mágicas ou demoníacas, por conta disso, os primeiros médicos foram sacerdotes e feiticeiros. O louco era visto como alguém excêntrico, ou possuído pelo demônio, devido ao seu comportamento que sempre se distanciava do que era considerado o padrão para um determinado grupo de pessoas.

Na Grécia Antiga, os loucos eram valorizados pela sociedade, considerados escolhidos pelo Divino, os gregos antigos acreditavam que as crises de agitação estavam relacionadas às forças sobrenaturais. Em Esparta, era comum lançar crianças com deficiências físicas ou mentais em precipícios com mais de dois mil metros de altitude.

Na Roma Antiga, tanto os nobres como os plebeus tinham permissão para sacrificar filhos que nasciam com alguma deficiência. Os médicos romanos, influenciados pela filosofia gregas dedicavam-se a psiquiatria forense, definindo por meio de leis as patologias mentais.

Durante a Idade Média, os loucos andavam livremente pela sociedade, sendo muitas vezes considerados sagrados. Porém, essa situação vai se transformar após o final da Idade Média. Com a lepra controlada, os leprosários começam a ser utilizados para tratamento das doenças venéreas no fim do século XV. Depois passam a ser usados para tratar todos os tipos de doentes, inclusive os loucos. Os portadores de doenças venéreas e os loucos passam a compartilhar a exclusão.

No Renascimento, entre os séculos XIV e XVI, a loucura era vista como um saber esotérico sobre a natureza da vida. Os loucos 'conhecidos' eram tolerados, mas os loucos 'estranhos', com comportamentos desviantes e bizarros, incluindo os bêbados e os devassos, eram confinados em navios numa espécie de exílio ritualístico.
"Há na França, no começo do século XVII, loucos célebres com os quais o público, e o público culto, gosta de se divertir; alguns como Bluet d’Arbère escrevem livros que são publicados e lidos como obras de loucura. Até cerca de 1650, a cultura ocidental foi estranhamente hospitaleira a estas formas de experiência."
(Michel Foucault, em 'Doença mental e psicologia')
A nave dos loucos era um tema pictórico, e uma prática social corrente, onde os loucos eram retirados dos centros urbanos e embarcados para navegar sem rumo. A água era entendida como um meio de purificação da suposta “animalidade” de uma natureza secreta, oculta e desconhecida do ser humano.

O início da Idade Moderna, entre os séculos XVI e XVII, é marcado pela presença do filósofo René Descartes (1956-1650) como maior representante da cisão entre razão e desrazão, entendendo a loucura como algo que não faz parte da razão e por conta disso nos conduz ao erro. Deste modo, passou a separar o que era racional e verdadeiro do que era equivocado e falso, silenciando a loucura do discurso racional e internando ela no aspecto institucional.

Em 1656 é fundado por decreto o Hospital Geral de Paris, inaugurando a grande internação dos pobres. O Hospital Geral tinha como objetivo recolher e “hospedar” os pobres de Paris, suprimindo a mendicância e a ociosidade. Pessoas de qualquer sexo ou idade, doentes ou em recuperação, curáveis ou não eram forçados a trabalhar como forma de “purificação”.

Foucault observa que essas casas de internamento se espalharam rapidamente por toda a Europa, especialmente na França, Alemanha e Inglaterra, muitas delas estabelecidas dentro dos muros dos antigos leprosários, mantidas com dinheiro público. A grande internação é o momento onde a loucura é relacionada com a incapacidade para o trabalho e de integrar-se no grupo, passando a se enquadrar dos problemas da cidade.

Chega um tempo em que a pobreza não precisa mais ser encarcerada, mas a loucura sim. O louco, além de ser entendido como desajustado, perturbado e perigoso, também é entendido como aquele que não produz, que é incapaz de trabalhar e participar da sociedade, que não consegue se integrar nos grupos sociais, e por conta disso atrapalha a estrutura social e a ordem estabelecida.

No final da Idade Moderna, alguns filósofos e psiquiatras reformistas começaram a ver o confinamento do louco como uma maldade, deixando de ver a loucura como um crime, passando a ver ela como uma doença. Neste momento surge a ideia da existência de um ser normal, anterior à doença, e passa-se a ver o louco como um doente, fora da normalidade.

No final do século XVIII e durante o século XIX, surgem os asilos com valor terapêutico, a loucura passa a ser entendida por 'alienação mental', Na França, Philippe Pinel liberta os loucos de Bicêtre, em 1794, e defende sua reeducação através do controle social e moral. Na Inglaterra, Samuel Tuke busca curar os doentes numa casa de campo, livre de grades e correntes. Apesar destes movimentos, não houve um rompimento com o internamento. Os loucos passam a serem liberados do encarceramento, mas colocados sob cuidados médicos.

Tanto para Pinel quanto para seu aluno Esquirol, o asilo era o melhor meio de garantir a segurança pessoal dos loucos e sua família, ao libertá-los de influências externas. Lugar de vigilância e de trabalho como principal meio de cura. É o trabalho que dignifica o homem e transforma o alienado num ser útil e dócil.

Do século XVIII em diante, não é mais necessário lidar com a ociosidade, mas a necessidade se torna em utilizar e manter a mão de obra. A prática de internar os loucos passa a ser vista como um desperdício de mão de obra. A loucura passa a ser entendida enquanto 'doença mental', e que, portanto deve ser submetida a um tratamento e um ajuste.

A loucura passa de uma indiferenciação, entre os séculos XV e XVI, onde não havia uma distinção entre loucura e saber, a loucura era uma forma de saber, que manifesta a realidade de outro mundo: o louco é um estranho, entregue a peregrinos e navegantes. Um período de segregação, entre os séculos XVII e XVIII, onde a loucura passa a ser associada ao sonho e ao erro, excluído da razão, iniciando seu enclausuramento com a pobreza, as doenças venéreas e a incapacidade para o trabalho. Por fim, se torna um objeto de saber médico, entre o final do século XVIII e início do século XIX, passa a ser entendida como “doença mental”, que necessita de tratamento, sendo um objeto do conhecimento a ser dominado e controlado. 

Do século XIX em diante, o médico passa a ter um papel central de saber e poder sobre a loucura, o asilo aparece como um modelo institucionalizado que transformou o internamento num procedimento terapêutico. O estatuto do médico e da instituição asilar não se assenta inicialmente tanto em seu saber, mas especialmente por sua instância moral.

Um ano depois da segunda edição da ‘História da Loucura’, em 1973, Foucault oferece um curso no Collège de France intitulado ‘O poder psiquiátrico’, que pode ser visto como uma continuação de sua obra anterior. Ele passa a analisar os dispositivos de poder disciplinar enquanto produtores de enunciados de saber-poder.
"No registro das práticas sociais, Foucault aborda então, em primeiro lugar, a descrição da circulação da loucura (...). Passa depois à grande reclusão, o espaço no qual se recluiu quem já não tinha lugar na sociedade burguesa dos séculos XVII e XVIII: os loucos, os indigentes, os vagabundos, os sodomitas, os blasfemos, as prostitutas, os libertinos, etc. E, finalmente, o relato chega até o momento em que surge o asilo psiquiátrico como lugar de internação reservado aos doentes mentais. A cada uma dessas experiências sociais corresponde, no registro dos saberes (a filosofia, o direito, a medicina) ou da literatura, determinada concepção de loucura."
(Edgardo Castro, em ‘Introdução a Foucault’) 
Foucault constata inicialmente uma circulação livre da loucura, representada pelas embarcações que percorriam os rios da Europa. Esse cenário se transforma com a reclusão dos séculos XVII e XVIII, onde os loucos, vagabundos, indigentes, blasfemos, prostitutas e libertinos compartilham do mesmo local de exclusão. E, por fim, o asilo psiquiátrico, local de internação reservado aos doentes mentais.

No Renascimento a loucura está numa posição de liberdade, tida como uma expressão de um saber diferenciado e interessante, com algo de sagrado e trágico. Na Modernidade ela passa a ser entendida como desrazão, que deve ser internada. Na Contemporaneidade ela será inicialmente entendida como alienação mental, para depois ser tratada como doença mental, que deve submeter a um tratamento.



Por Bruno Carrasco.

Referências
BATISTA, Micheline D. G. Breve história da loucura, movimentos de contestação e reforma psiquiátrica na Itália, na França e no Brasil. Revista de Ciências Sociais, n. 40, Abril de 2014, pp. 391-404, fev. 2014.
CASTRO, Edgardo. Introdução a Foucault. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2015.
FOUCAULT, Michel. Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 2000.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. Trad.: José Neto. São Paulo: Perspectiva, 2017.
YAZBEK, André. 10 lições sobre Foucault. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.