Constituição histórica da subjetividade


No livro 'Psicologia: uma (nova) introdução', os autores Luiz Claudio Figueiredo e Pedro Luiz Ribeiro de Santi comentam sobre a constituição histórica do "psicológico" ao longo dos séculos - um campo de conhecimentos e práticas que possibilitaram o desenvolvimento dos projetos de psicologia científica.

A experiência da subjetividade privatizada refere-se ao fato de termos experiências pessoais que sentimos ninguém ter acesso a elas. Por exemplo, quando ficamos pensando por um longo tempo em fazer uma coisa, quase optamos por ela e acabamos fazendo outra, sem que ninguém fique sabendo destes nossos pensamentos, pois toda essa experiência ocorreu em nossa subjetividade.

Em diversos momentos sentimos alegrias, tristezas entre outros sentimentos que não comunicamos a outras pessoas. Além de experimentarmos eles de maneira subjetiva, mantemos diversas experiências e pensamentos em nossa privacidade. Segundo os autores, essa experiência da subjetividade privada é um evento muito recente na história da humanidade.

Diversos estudiosos, historiadores e antropólogos constataram que o modo como sentimos e entendemos nossas experiências não são os mesmos de tempos atrás, ou seja, não são eternos e nem universais. Nossa autopercepção enquanto sujeitos capazes de decisões, que experimenta sentimentos e emoções privados só se desenvolveu num certo momento da sociedade, por conta de algumas condições.

Muitas vezes em que atravessamos crises sociais, ou quando uma tradição cultural ou de costumes é contestada, surge a possibilidade de experimentar e criar novos modos de ser e viver. Nesses momentos, as pessoas precisam fazer decisões por conta própria, buscando em si mesmas encontrar e criar novas referências para suas escolhas.

Essa experiência de perda de referências morais e éticas coletivas, como por exemplo uma religião única, a família "tradicional", ou uma lei "universal", faz com que busquemos novas referências. Neste momento se aprimora a experiência da subjetividade privatizada, quando fazemos questões do tipo: quem sou eu? Como estou me sentindo? O que desejo? O que considero justo e adequado?

Hoje nos entendemos como indivíduos autônomos, porém nem sempre foi assim, essa não é uma condição natural ou universal da experiência humana. Essa percepção de autonomia começa a aparecer especialmente entre o final da Idade Média e o início da Modernidade, se aprimorando na Idade Contemporânea.

Na maioria das sociedades antigas haviam poucos elementos que possibilitavam se sentirem livres e autônomas, capazes de iniciativas, com sentimentos e desejos próprios, a experiência coletiva muitas vezes prevalecia a individual. Nossa noção de subjetividade privada surge na passagem do Renascimento para a Idade Moderna, constituindo o sujeito moderno.

A experiência medieval possibilitava um sentimento de que as pessoas eram parte de uma ordem superior que as amparava e mantinha seus costumes e regras morais. A perda desse sentimento de uma ordem superior gerou uma grande sensação de liberdade, mas também fez com que as pessoas se sentissem perdidas e inseguras, sem saber o que e como escolherem, por conta da ausência de uma referência única.

O pensador francês Michel de Montaigne (1533-1592), em seus "Ensaios", valorizou a interioridade, dizendo ao leitor que estava tomando a si mesmo como tema do livro, mesmo que sua vida seja comum e desprovida de feitos notáveis. O livro foi muito criticado com o argumento de que uma vida comum não mereceria ser objeto de tal obra.

No final do século XVIII, surge um movimento cultural e filosófico chamado Romantismo, que trazia diversas críticas ao Iluminismo e, especialmente, à sua vertente racionalista. A ideia cartesiana de que o homem é essencialmente um ser racional é contrariada com a concepção de que o homem é um ser passional e sensível.

Com o Romantismo, a razão passa a ser questionada, evidenciando a potência dos impulsos, dos afetos e das forças da natureza, entendidas como superiores à razão. Reconhecendo a diferença entre os indivíduos, e a liberdade passa a ser então a liberdade de ser diferente. Apesar de todos serem diferentes e únicos, é possível uma comunicação por meio das artes, da religião ou do patriotismo.

O Romantismo representou a crise do sujeito moderno, destituindo o "eu" de seu lugar privilegiado de senhor e soberano, constatando que a pessoa é muito mais movida pelas emoções do que pela razão, destacando a individualidade e as diferenças singulares de cada um.

A experiência da subjetividade privatizada, onde nos reconhecemos como livres, diferentes, capazes de experimentar nossos sentimentos, que termos desejos e pensarmos de maneira independente dos demais membros da sociedade é uma experiência muito recente na história da humanidade, os estudos históricos e antropológicos revelam que nem sempre foi assim na história, em outras sociedades e culturas.


Referência:
FIGUEIREDO, Luiz Cláudio; SANTI, Pedro Luiz. Psicologia, uma (nova) introdução: uma visão histórica da psicologia como ciência. 2. ed. São Paulo: Educ, 2004.