Críticas ao conceito de doença mental

O que entendemos por "doença mental" não é uma descoberta da medicina, da psiquiatria ou da psicologia, mas uma criação discursiva sobre uma apreciação de um conjunto de condições comportamentais e emocionais, que são percebidas como "doentias" segundo um critério específico.

Mas, por que num certo momento da história, o comportamento "desviante" ou fora do habitual passou a ser entendido como um problema, sendo diagnosticado e tratado, onde o tratamento segue uma espécie de ajustamento da pessoa a um modelo de vida específico? 

A psiquiatria é uma ciência recente, e o conceito de doença mental não tem mais de 200 anos. Antes disso não se percebia como doente, mas enquanto louco ou divergente, de modo que não havia um tratamento clínico para o divergente. A doença mental é uma disposição historicamente determinada, inclusive com intuitos específicos, morais e de controle de conduta.

O surgimento da psiquiatria não partiu de uma teoria ou de uma saber científico, mas de uma necessidade disciplinar e institucional, visando organizar diferentes pessoas em direção a um modelo normativo de vida. Todo o saber produzido sobre a loucura e o desviante, é, na realidade, uma maneira de controlar modos de vida desviantes.

"A ciência é essencialmente discurso, um conjunto de proposições articuladas sistematicamente. Mas, além disso, é um tipo específico de discurso: um discurso que tem pretensão de verdade. (...) A ciência não reproduz uma verdade; cada ciência produz sua verdade. Não existem critérios universais ou exteriores para julgar a verdade de uma ciência."
(Roberto Machado, em 'Foucault, a ciência e o saber')

No século XIX, quando a loucura passou a ser percebida como "doença mental", tal entendimento legitimou uma série de práticas institucionais sobre o louco, o diferente, o excêntrico, e todos aqueles arredios à norma. Critérios diagnósticos, determinação de intervenções e noções de "saúde mental" passam a servir uma necessidade institucional.

Ao rotular alguém como "doente mental", estamos na realidade declarando que essa pessoa apresenta comportamentos que contrariam a conveniência social, e que esta pessoa precisa de um tratamento, uma espécie de "ajustamento". Lembrando que o diagnóstico de doença ou transtorno mental não parte de uma verificação física da pessoa, mas de uma avaliação subjetiva sobre seus comportamentos.

Segundo Michel Foucault, todo saber engendra formas de poder. Se a diferença ou a loucura são percebidas pelos profissionais de psicologia e psiquiatria como uma doença ou transtorno, passam a elaborar um conjunto de saberes e práticas orientados para a normalidade e o tratamento do desviante, identificando uma incapacidade do sujeito avaliado como "doente".

Não é à toa que a maioria dos diagnósticos psiquiátricos correspondem a comportamentos que constatam uma dificuldade na produtividade da pessoa no trabalho ou que se relacionam à sua indisposição para atividades em grupo. O tratamento serve geralmente para realocar o paciente na engenharia social, tornando este um "bom funcionário", útil e dócil.

"Quem são, porém, as pessoas sadias? Como se definem a si próprias? As definições de saúde mental propostas pelos especialistas usualmente correspondem à noção de conformismo a um conjunto de normas sociais mais ou menos arbitrariamente pressupostos."
(David Cooper, em 'Psiquiatria e Antipsiquiatria')

Enfim, o discurso psiquiátrico está carregado de um desejo de controle, repressão e dominação sobre as pessoas desviantes, onde até mesmo atividades comuns e dificuldades propriamente humanas passam a ser avaliadas como problemas mentais, submetidos a tratamentos, que na realidade atuam como práticas de ajustamento social.


Por Bruno Carrasco, terapeuta e professor, graduado em psicologia, licenciado em filosofia e pedagogia, pós-graduado em ensino de filosofia, psicoterapia fenomenológico-existencial e aconselhamento filosófico. Pensa as questões psicológicas a partir de um viés filosófico, histórico e social, pesquisando sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.


Referências:
COOPER, David. Psiquiatria e Antipsiquiatria. Tradução: Regina Schnaiderman. São Paulo: Editora Perspectiva, 1982.
HEATHER, Nick. Perspectivas Radicais em Psicologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
MACHADO, Roberto. Foucault, a Ciência e o Saber. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
SERRANO, Alan Indio. O que é Psiquiatria Alternativa. São Paulo: Brasiliense, 1992.

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