Verdade e interpretação em Nietzsche

Os filósofos buscam a verdade? Nietzsche não. Segundo ele, a vontade de verdade é uma vontade fraca, que tende para a adaptação e conservação, a busca da verdade nega a vida para enaltecer o conhecimento. Diferente desta, a vontade forte, é criadora e artística, que afirma a vida e a experiência, a perspectiva artística afirma a potência criadora e salutar.

Friedrich Nietzsche fazia filosofia por meio de aforismos, numa arte de interpretação e transvaloração, propondo sempre um olhar inconcluso, que configura continuamente novas perspectivas. O perspectivismo e o pluralismo são características de sua filosofia, onde um fato nunca é entendido independente da perspectiva de quem observa, sempre interpretado por um viés e valores específicos.

Não há um olhar neutro, pois todo olhar parte do ponto de vista de um observador, de uma época, um espaço e uma série de condições. A verdade não é algo único e igual para todos, mas apenas uma perspectiva. A realidade possibilita uma multiplicidade de interpretações, não há como definir qual a "mais correta" ou "adequada", o que interessa é perceber qual a "mais potente". Definir a mais correta depende de um julgamento moral sobre o que se interessa, já a potência entra na dinâmica das forças.

"Para Nietzsche, todo conhecimento é inevitavelmente guiado por interesses e condicionamentos subjetivos, ideológicos; o conhecimento resulta da projeção de nossos impulsos e anseios, razão pela qual Nietzsche considera sempre determinado por certa perspectiva, seja individual, seja sócio culturalmente determinada."
(Giacoia, em 'Nietzsche')

Em diversos fragmentos de suas obras, Nietzsche aponta uma crítica sobre a noção de sujeito, sobre a ideia de consciência e de "eu". Segundo o filósofo, o "eu" não se trata de uma substância, mas de um processo múltiplo, multifacetado, e em constante reinvenção. A ideia de um "ser" não é mais que uma fábula.

Não há um "eu" verdadeiro, encoberto e essencial, aguardando nosso desvelamento. Não há como saber quando deixamos de lado todas as nossas máscaras para tomar contato com esse "eu". Quando tiramos uma máscara aparece outra, "por trás de cada máscara, há sempre muitas outras máscaras; por trás de cada pele, outras peles" (DIAS, p. 104-105).

"Nietzsche não crê que haja algum Eu unitário e preexistente que possa ser um puro e simples objeto de conhecimento, como sugere o dito grego 'conheça a si mesmo'. Pelo contrário, Nietzsche proclama 'queira um Eu': nós temos de tornarmo-nos quem nós somos através da autocriação ou criação de si."
(Woodward, em 'Nietzscheanismo')

Para Nietzsche, o que entendemos por "eu" não é mais que uma ficção, um simples vício de linguagem, onde atribuímos uma unidade sobre algo múltiplo, transitório, complexo e provisório. Mas as ficções fazem parte da vida, o caráter ficcional é uma condição da vida.

Deste modo, o conhecimento de si não é suficiente para nos entender, pois não há um "eu" a ser decifrado. Como somos multiplicidades, seria necessário nos observar por meio de uma multidão de olhares, de nossa história, das configurações de nosso tempo, e mesmo assim só perceberemos instantes de nosso fluir.

"Se é verdade que a lebre tem sete peles, o homem pode despojar-se de setenta vezes sete peles e ainda não poderá exclamar: Até que enfim! Agora, este és tu na verdade! Já não é mais uma casca!"
(Nietzsche, em 'Schopenhauer como educador')

A verdade não é algo único, acabado ou absoluto, não é uma adequação do intelecto a um fato, não corresponde a um dado, mas uma criação, recheada de interesses. Não há um significado único sobre os fatos, pois estes são sempre interpretados por alguma pessoa, de acordo com seu contexto, sua situação, intenção e condição num dado momento.

Não há um sentido a ser alcançado por trás das coisas, mas inúmeros sentidos e perspectivas possíveis. Entendemos o mundo a partir de nossos impulsos e necessidades, cada impulso opera com um desejo de controle sobre os outros, buscando impor sua perspectiva.

As forças de interpretação sempre se transfiguram em novas interpretações, num fluxo interminável. Não há uma origem a se alcançar, mas novas interpretações a traçar. As coisas não possuem um fundamento, um princípio ou uma essência a ser revelada, mas se dispõem a um constante jogo de aproximações, distanciamentos, avaliações e perspectivas.

O além-do-homem é aquele afirma a transitoriedade do mundo, estabelecendo um entendimento de mundo a partir das interpretações ativas. Ele pratica a autocriação, a criação de valores afirmativos e uma interpretação criativa do mundo, propondo um "eu criador", que não sucumbe ao mundo, mas que cria novos mundos.

A filosofia, para Nietzsche, pode ser utilizada como uma ferramenta para a revisão dos modos de vida e dos modos de filosofar. Uma filosofia que não parte da razão, mas do corpo e dos instintos, reavaliando os valores que ampliam e os que inferiorizam, reconhecendo a mudança, o devir, a multiplicidade, o contraste e a contradição.

"(...) para elevar assim a leitura à dignidade de 'arte' é mister, antes de mais nada, possuir uma faculdade hoje muito esquecida, uma faculdade que exige qualidades de vaca, e absolutamente não as de um homem 'moderno': a de ruminar..."
(Nietzsche, prefácio de 'Genealogia da Moral')

Nietzche contraria o privilégio da verdade na tradição da filosofia ocidental, afirmando o valor da aparência. Como não há uma verdade ou essência a ser encontrada, Nietzsche propõe avaliar o conhecimento a partir da perspectiva da força. Quando valorizamos a aparência, afirmamos a experiência como ela acontece, possibilitando uma abundância de forças diante da vida, ampliando nossa disposição de viver.

"Nosso mundo é muito mais o incerto, o cambiante, o variável, o equívoco, um mundo perigoso talvez, certamente mais perigoso do que o simples, o imutável, o previsível, o fixo, tudo aquilo que os filósofos anteriores, herdeiros das necessidades do rebanho e das angústias do rebanho, honraram acima de tudo.”
(Nietzsche, em 'Vontade de Potência II')


Por Bruno Carrasco, terapeuta e professor, graduado em psicologia, licenciado em filosofia e pedagogia, pós-graduado em ensino de filosofia, psicoterapia fenomenológico-existencial e aconselhamento filosófico. Pensa as questões psicológicas a partir de um viés filosófico, histórico e social. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. 3 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. A Genealogia da Moral. Petrópolis: Vozes, 2017.
NIETZSCHE, Frierich. Schopenhauer como educador. Em: Nietzsche. Escritos sobre educação. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2003.
WOODWARD, Ashley. Nietzscheanismo. Petrópolis: Vozes, 2017.

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