Esboço para uma teoria das emoções - Jean-Paul Sartre

O livro 'Esboço para uma Teoria das Emoções', publicado em 1939, por Jean-Paul Sartre, propõe uma análise fenomenológica das emoções humanas, com influências de Edmund Husserl e Martin Heidegger. Para Sartre, as emoções não são meras reações corporais automáticas, desordens fisiológicas ou respostas inconscientes, mas uma modificação em nosso modo de existir em relação com o mundo.

Sua proposta de uma teoria das emoções utilizou a fenomenologia como método, que não parte dos fatos, mas dos fenômenos significativos, buscando compor uma psicologia fenomenológica das emoções. O filósofo concebe a emoção como um modo de existência da consciência, uma estrutura da consciência, que confere um sentido e significado para a vida psíquica.

Alguns trechos do livro:

O que é certo, em todo caso, é que não buscarei a explicação ou as leis da emoção em estruturas gerais e essenciais da realidade humana, mas sim os processos da própria emoção, de modo que, mesmo devidamente descrita e explicada, ela nunca será senão um fato entre outros, um fato fechado em si que nunca permitirá compreender outra coisa senão ele, nem captar, através dele, a realidade essencial do homem.

os fatos psíquicos com os quais deparamos nunca são primeiros. Eles são, em sua estrutura essencial, reações do homem contra o mundo; portanto, supõem o homem e o mundo, e só podem adquirir seu sentido verdadeiro se inicialmente elucidamos essas duas noções.

toda consciência existe na medida exata em que é consciência de existir

precisamente para a realidade humana, existir é sempre assumir seu ser, isto é, ser responsável por ele em vez de recebê-lo de fora como faz uma pedra. E, como a "realidade humana é por essência sua própria possibilidade, esse existente pode 'escolher-se' ele próprio em seu ser, pode ganhar-se, perder-se". Essa "assunção" de si que caracteriza a realidade humana implica uma compreensão da realidade humana por ela mesma, por obscura que seja essa compreensão.

Assim, a realidade humana que é eu assume seu próprio ser ao compreendê-lo. Essa compreensão é a minha. Portanto, sou antes de qualquer coisa um ser que compreende mais ou menos obscuramente sua realidade de homem, o que significa que me faço homem ao compreender-me como tal.

De todo modo, a fenomenologia é o estudo dos fenômenos - não dos fatos. E por fenômeno convém entender "o que denuncia a si mesmo", aquilo cuja realidade é precisamente a aparência.

De fato, existir, para a realidade-humana, é, segundo Heidegger, assumir seu próprio ser num modo existencial de compreensão; existir, para a consciência, é aparecer a si mesma, segundo Husserl.

para o fenomenólogo, todo fato humano é por essência significativo. Se lhe retirarmos a significação, lhe retiramos sua natureza de fato humano. A tarefa de um fenomenólogo será, pois, estudar a significação da emoção.

é impossível considerar a emoção como uma desordem psicofisiológica. Ela tem sua essência, suas estruturas particulares, suas leis de aparecimento, sua significação. Ela não poderia vir de fora à realidade-humana. Ao contrário, é o homem que assume sua emoção e, por conseguinte, a emoção é uma forma organizada da existência humana.

A consciência emocional é primeiramente irrefletida e, nesse plano, ela só pode ser consciência dela mesma no modo não-posicional. A consciência emocional é, em primeiro lugar, consciência do mundo.

De fato, é evidente que o homem que tem medo, tem medo de alguma coisa.

Em uma palavra, o sujeito emocionado e o objeto emocionante estão unidos numa síntese indissolúvel. A emoção é uma certa maneira de apreender o mundo.

O sujeito que busca a solução de um problema prático está fora no mundo, ele percebe o mundo a todo instante, através de todos os seus atos. Se fracassa em suas tentativas, irrita-se, sua irritação mesma é ainda uma maneira de como o mundo lhe aparece.

Agora podemos conceber o que é uma emoção. É uma transformação do mundo.

Em suma, na emoção é o corpo que, dirigido pela consciência, muda suas relações com o mundo para que o mundo mude suas qualidades. Se a emoção é um jogo, é um jogo no qual acreditamos.

Assim revela-se-nos o verdadeiro sentido do medo: é uma consciência que visa a negar, através de uma conduta mágica, um objeto do mundo exterior, e que irá ao ponto de aniquilar-se para aniquilar o objeto com ela.

A tristeza passiva é caracterizada, como se sabe, por uma conduta de abatimento: há diminuição do tônus muscular, palidez, resfriamento das extremidades; a pessoa vira-se para um canto e permanece sentada, imóvel, oferecendo ao mundo a menor superfície possível. Prefere a penumbra à plena luz, o silêncio aos ruídos, a solidão de um quarto à multidão dos lugares públicos ou das ruas. "Para ficar sozinho, dizem, com sua dor." Isso não é verdade: é de bom-tom, com efeito, parecer meditar profundamente sobre sua mágoa. Mas são raros os casos em que se aprecia realmente a dor.

Em outras palavras, por não poder e querer realizar os atos que projetávamos, fazemos de modo que o universo nada mais exija de nós. Para tanto podemos apenas agir sobre nós mesmos, "ficar na penumbra"

Assim a paciente livrou-se do sentimento penoso de que o ato estava em seu poder, de que tinha a liberdade de fazê-lo ou não. A crise emocional é aqui abandono de responsabilidade.

Deve-se considerar, portanto, que a emoção não é simplesmente representada, não é um comportamento puro: é o comportamento de um corpo que se acha num certo estado.

Assim podemos compreender o essencial: a emoção é um fenômeno de crença. A consciência não se limita a projetar significações afetivas no mundo que a cerca: ela vive o mundo novo que acaba de constituir.

A consciência que se emociona assemelha-se muito à consciência que adormece. Esta, como aquela, lança-se num mundo novo e transforma seu corpo, como totalidade sintética, de modo que ela possa viver e apreender esse mundo novo através dele.

a consciência é vítima de sua própria armadilha. Precisamente porque vive o novo aspecto do mundo acreditando nele, ela é apanhada em sua própria crença, exatamente como no sonho, na histeria.

Ela é cativa dela mesma, no sentido de que não domina essa crença que se esforça por viver, e isto, precisamente, porque ela a vive, porque se absorve em vivê-la.

Assim, como a consciência vive o mundo mágico no qual se lançou, ela tende a perpetuar esse mundo onde é cativa: a emoção tende a perpetuar-se. É nesse sentido que se pode dizê-la sofrida: a consciência emociona-se sobre sua emoção, ela exagera.

O que é constitutivo da emoção é que ela capta no objeto algo que a excede infinitamente. Com efeito, há um mundo da emoção.

Deve-se falar de um mundo da emoção como se fala de um mundo do sonho ou dos mundos da loucura. Um mundo, isto é, sínteses individuais que mantêm entre si relações e que possuem qualidades.

Assim, através da emoção, uma qualidade esmagadora e definitiva da coisa nos aparece. E é isto o que ultrapassa e mantém nossa emoção. O horrível não é apenas o estado atual da coisa, é ameaça quanto ao futuro, estende-se por todo o porvir e o obscurece, é revelação sobre o sentido do mundo.

Vimos que na emoção a consciência se degrada e transforma bruscamente o mundo determinado em que vivemos num mundo mágico. Mas há uma recíproca: é o próprio mundo que às vezes se revela à consciência como mágico quando o esperávamos determinado.

De fato, a consciência só pode ser objeto transcendente ao sofrer a modificação de passividade.

De todo modo, convém notar que a emoção não é uma modificação acidental de um sujeito que, por sua vez, estaria mergulhado num mundo inalterado. É fácil ver que toda apreensão emocional de um objeto amedrontador, irritante, entristecedor, etc. só pode ocorrer sobre o fundo de uma alteração total do mundo.

Em uma palavra, perceber um objeto qualquer como horrível é percebê-lo sobre o fundo de um mundo que se revela como sendo já horrível.

A emoção não é um acidente, é um modo de existência da consciência, uma das maneiras como ela compreende (no sentido heideggeriano de "verstehen") seu "ser-no-mundo".


Referência:
SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Tradução: Paulo Neves. Porto Alegre: L&PM, 2008.

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