Aurora - Nietzsche

Aurora é uma obra do filósofo Friedrich Nietzsche, tendo como subtítulo "reflexões sobre os preconceitos morais", foi publicada em 1881, composta por 575 aforismos divididos em cinco livros. Em seus textos ele aborda sobre o desprendimento dos preconceitos morais que atuam na vida, preconceitos estes constituídos historicamente e mantidos pela tradição.

A moralidade é entendida como a obediência aos costumes, sejam estes quais forem. Em seus aforismos, o filósofo propõe romper a maneira tradicional avaliar e agir, evidenciando a capacidade criadora e inventiva, desmistificando as perspectivas morais estabelecidas pela tradição. Com isso, o indivíduo se percebe criador de valores, capaz de romper a tradição da moralidade.

Nietzsche menciona em seu livro sobre a história dos costumes e da moralidade, e a história do pensamento e do conhecimento, destacando os preconceitos da tradição, analisando a história dos sentimentos morais, dos preconceitos filosóficos e dos preconceitos morais. Sua aurora anuncia um novo dia, um novo despertar para a vida.


Trechos do livro:

— Naquele tempo empreendi algo que pode não ser para qualquer um: desci à profundeza, penetrei no alicerce, comecei a investigar e escavar uma velha confiança, sobre a qual nós, filósofos, há alguns milênios construíamos, como se fora o mais seguro fundamento — e sempre de novo, embora todo edifício desmoronasse até hoje: eu me pus a solapar nossa confiança na moral. Estão me compreendendo?

Até agora, foi sobre o bem e o mal que se refletiu da pior maneira: sempre foi um tema demasiado perigoso. A consciência, a boa reputação, o inferno, às vezes até a polícia não permitiam e não permitem a imparcialidade; na presença da moral, como diante de toda autoridade, não se deve pensar, menos ainda falar: aí — se obedece! Desde que o mundo é mundo, autoridade nenhuma se dispôs a ser alvo de crítica; e criticar a moral, tomá-la como problema, como problemática: o quê? isso não era — não é — imoral?

A resposta correta seria, isto sim, que todos os filósofos construíram sob a sedução da moral

Mas os juízos de valor lógicos não são os mais profundos e mais fundamentais a que pode descer a ousadia de nossa suspeita: a confiança na razão, com que se sustenta ou cai a validez desses juízos, é, sendo confiança, um fenômeno moral…

Em nós se realiza, supondo que desejem uma fórmula — a auto-supressão da moral.

E finalmente: por que deveríamos dizer tão alto e com tal fervor aquilo que somos, que queremos ou não queremos? Vamos observá-lo de modo mais frio, mais distante, com mais prudência, de uma maior altura; vamos dizê-lo, como pode ser dito entre nós, tão discretamente que o mundo não o ouça, que o mundo não nos ouça! Sobretudo, digamo-lo lentamente... 

Um tal livro, um tal problema não tem pressa; além do que, ambos somos amigos do lento, tanto eu como meu livro. Não fui filólogo em vão, talvez o seja ainda, isto é, um professor da lenta leitura: — afinal, também escrevemos lentamente.

a moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas costumes são a maneira tradicional de agir e avaliar. Em coisas nas quais nenhuma tradição manda não existe moralidade; e quanto menos a vida é determinada pela tradição, tanto menor é o círculo da moralidade. O homem livre é não-moral, porque em tudo quer depender de si, não de uma tradição: em todos os estados originais da humanidade, “mau” significa o mesmo que “individual”, “livre”, “arbitrário”, “inusitado”, “inaudito”, “imprevisível”.

O que é a tradição? Uma autoridade superior, a que se obedece não porque ordena o que nos é útil, mas porque ordena. — O que distingue esse sentimento ante a tradição do sentimento do medo?

ela exigia que alguém observasse os preceitos sem pensar em si como indivíduo. Originalmente, portanto, tudo era costume, e quem quisesse erguer-se acima dele tinha que se tornar legislador e curandeiro, e uma espécie de semideus: isto é, tinha de criar costumes — algo terrível, mortalmente perigoso!

Não nos enganemos quanto ao motivo da moral que requer, como indício da moralidade, a mais difícil obediência do costume! A auto-superação é exigida não por suas conseqüências úteis para o indivíduo, mas a fim de que o costume, a tradição apareça vigorando, não obstante toda vantagem e desejo individual: o indivíduo deve sacrificar-se — assim reza a moralidade do costume.

Cada ação individual, cada modo de pensar individual provoca horror; é impossível calcular o que justamente os espíritos mais raros, mais seletos, mais originais da história devem ter sofrido pelo fato de serem percebidos como maus e perigosos, por perceberem a si próprios assim. Sob o domínio da moralidade do costume, toda espécie de originalidade adquiriu má consciência; até o momento de hoje, o horizonte dos melhores tornou-se ainda mais sombrio do que deveria ser.

Avancemos mais um passo: todos os homens superiores, que eram irresistivelmente levados a romper o jugo de uma moralidade e instaurar novas leis, não tiveram alternativa, caso não fossem realmente loucos, senão tornar-se ou fazer-se de loucos.

Cada pequeno passo no âmbito do livre pensar, da vida pessoalmente configurada, sempre foi pelejado com martírios físicos e espirituais: não apenas o passo à frente!

O costume representa as experiências dos homens passados acerca do que presumiam ser útil ou prejudicial — mas o sentimento do costume (moralidade) não diz respeito àquelas experiências como tais, e sim à idade, santidade, indiscutibilidade do costume. E assim este sentimento é um obstáculo a que se tenham novas experiências e se corrijam os costumes: ou seja, a moralidade opõe-se ao surgimento de novos e melhores costumes: ela torna estúpido.

Todo aquele que subverteu a lei de costume existente foi tido inicialmente como homem mau: mas se, como sucedeu, depois não se conseguia restabelecê-la e as pessoas acomodavam-se a isso, o predicado mudava gradualmente; — a história trata quase exclusivamente desses homens maus, que depois foram abonados, considerados bons!

Não nego, como é evidente — a menos que eu seja um tolo —, que muitas ações consideradas imorais devem ser evitadas e combatidas; do mesmo modo, que muitas consideradas morais devem ser praticadas e promovidas — mas acho que, num caso e no outro, por razões outras que as de até agora. Temos que aprender a pensar de outra forma — para enfim, talvez bem mais tarde, alcançar ainda mais: sentir de outra forma.

Construir novamente as leis da vida e do agir — para essa tarefa nossas ciências da fisiologia, da medicina, da sociedade e da solidão não se acham ainda suficientemente seguras de si: e somente delas podemos extrair as pedras fundamentais para novos ideais (se não os próprios ideais mesmos). De modo que levamos uma existência provisória ou uma existência póstuma, conforme o gosto e o talento, e o melhor que fazemos, nesse interregno, é ser o máximo possível nossos próprios reges [reis] e fundar pequenos Estados experimentais. Nós somos experimentos: sejamo-lo de bom grado!

Se uma transformação deve ser a mais profunda possível, que o remédio seja dado em doses mínimas, mas ininterruptamente, por longos períodos! Que coisa grande pode ser criada de uma vez? Cuidemos, então, de não trocar apressadamente e com violência o estado da moral a que estamos habituados por uma nova valoração das coisas — não, queremos continuar vivendo nele ainda por muito tempo — até nos darmos conta, provavelmente bem depois, de que a nova valoração tornou-se em nós a força predominante e que as suas pequenas doses, a que temos de nos acostumar de agora em diante, plantaram em nós uma nova natureza.


Fonte:
NIETZSCHE, Friedrich W. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Tradução: Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso, 2016.