A Consolação em Boécio

Iluminura de um manuscrito de 'A Consolação da Filosofia', 1385

Severino Boécio foi um filósofo que viveu no início da Idade Média, de 484 à aproximadamente 525 d.C. É considerado o último filósofo romano e primeiro escolástico, tendo feito parte de um período de transição das perspectivas helenistas para o cristianismo. Sua filosofia é caracterizada por um ecletismo, envolvendo elementos da filosofia socrático-platônica, neoplatônica, aristotélica e estoica, juntamente com ensinamentos cristãos, valorizando o conhecimento e seu uso prático.

Ele traduziu, comentou e sintetizou obras de grandes filósofos como Platão e Aristóteles, se tornando um mediador da transmissão cultural das escolas gregas da antiguidade, traduzindo conceitos filosóficos para o latim, valorizando assim a cultura greco-romana. Foi influenciado pelo neoplatonismo e pelo estoicismo, e registrou em sua obra 'A Consolação da Filosofia' algumas das principais características de sua filosofia como uma prática de aconselhamento.

Em 'A Consolação da Filosofia’, escrita durante sua estadia na prisão, Boécio apresenta a filosofia de maneira alegórica por meio da figura de uma mulher que o consola, para a libertação de seus sofrimentos e medos. Apresenta a filosofia como a verdadeira felicidade, relacionada com Deus e o Bem, conquistada não por meio dos bens materiais, mas pela aceitação da ordenação própria da vida, tendo como busca a tranquilidade da alma a partir do reconhecimento da providência divina, encontrando em sua própria alma a fonte de superação de seus males, possibilitando uma conciliação interior da pessoa consigo mesma.

Sua filosofia é apontada como uma medicina da alma, que oferece como remédio inicialmente uma melhor compreensão sobre seu estado e um caminho de aproximação a sua própria interioridade. Sua consolação tem como objetivo a felicidade, entendendo perigosos os caminhos de pensamento mais fáceis e sedutores, que podem nos levar a ilusões, enganos e entendimentos equivocados.

Boécio recomenda a aplicação de remédios suaves, para depois oferecer remédios mais amargos e de maior eficácia, que correspondem ao contato com a natureza, a liberdade e a providência divina. Para ele, o desejo humano nos leva em direção da Fortuna, mas é permeado pelo equívoco de que os bens materiais podem nos gerar felicidade. Sua filosofia propõe a libertação de sua alma.

Sua consolação pela filosofia propõe avaliar de maneira prudente a natureza das coisas, em direção ao conhecimento de si. Neste sentido, a felicidade seria alcançada através do cultivo do bem interior, juntamente com o conhecimento da inteligência que rege o universo, propondo a serenidade estoica diante das adversidades, como também o ensinamento cristão da resignação e confiança na providência, para superar os males do mundo.

Boécio destaca a tensão entre o mundo interno e externo, entendendo que por meio da aceitação da condição humana é possível alcançar a tranquilidade de espírito, voltando-se para a interioridade, buscando a felicidade na alma, ao invés de buscar nas coisas exteriores. As situações adversas são entendidas como elementos da própria natureza, a filosofia oferece sua consolação não para eliminar o sofrimento, mas para possibilitar um sábio entendimento deste.

"A presença da Filosofia é um destaque positivo da confiança na racionalidade humana que, de alguma forma, participa da racionalidade divina." (SANGALLI, 2014)

Boécio entende que todas as pessoas desejam alcançar a felicidade, porém se perdem em meio a multiplicidade dos elementos exteriores, que estão carregados pela paixão. Para resolver essa situação, devem procurar por meio da filosofia o bem único e verdadeiro, entendido como Deus, libertando as paixões do corpo que adoecem a alma.

Sua filosofia oferece uma espécie de guia para "aprender a viver", com ideal ético de uma vida serena e feliz. Trata-se, portanto, de uma reflexão ético-filosófica sobre o modo de vida, uma pedagogia do viver que mescla valores cristãos com filosofias helenísticas, para o autoconhecimento. Diagnosticando o uso equivocado das paixões e a ausência da razão, propondo como tratamento um reencontro consigo mesmo.

"O que está em jogo aqui é a possibilidade da liberdade humana diante da aparência enganadora dos bens efêmeros que, em última análise, pressupõe o problema do “cuidado de si” e da “técnica de si” necessários para uma vida feliz. A questão é universal e será exatamente essa a inversão realizada por Boécio, seguindo os passos de outros filósofos (gregos) de privilegiar o próprio íntimo da alma humana, enquanto ser racional, ao recuperar valores morais e, mediante a reflexão ética, trilhar no caminho para a verdadeira felicidade. É uma reflexão puramente filosófica, empreendida por uma mente que pensa como cristão, porém, surpreendentemente, em nenhum momento apela para a religião cristã." (SANGALLI, 2014)

Entendendo que é condição da vida ter e perder bens, seria um equívoco supor que a felicidade residiria em sua posse. A Filosofia propõe o saber racional para retomar o contato com os verdadeiros valores. Boécio propõe a busca da verdadeira felicidade, ele constata que não se encontra a felicidade nas coisas temporais, pois estas não satisfazem a alma.

A busca deve ser atingir o fim perfeito, que é o bem, que não se encontra na experiência cotidiana, permeada por coisas passageiras, mutáveis e imperfeitas, que nos gera ansiedade por sua instabilidade.  Boécio entendia que as pessoas se enganam por se dedicarem a um bem por conta do que este promete, como a riqueza, o poder ou os prazeres, ou pelo uso desses bens como meios para alcançar outros fins.

Segundo o filósofo, a riqueza nos gera preocupações e inquietudes, os bens exteriores não tornam as pessoas felizes, pois mesmo tendo adquirido as coisas materiais ainda permanecemos ansiosos pelo receio de perder tudo aquilo que adquirimos, pois não há nenhuma garantia de que isso não aconteça. A riqueza não nos torna auto suficientes, mas empobrece nossa alma.

As riquezas não evitam o sentimento de necessidade, mas geram outras necessidades, inclusive não oferecem independência. Isso também ocorre com os cargos, que não tornam a pessoa virtuosa, mas geram falsas opiniões exteriores e não seu verdadeiro valor. O poder político não garante felicidade, pois quanto mais poder possui uma pessoa, esta fica preocupada e com medo, cercando-se de guardas para manter sua segurança, e por depender dos outros é menos poderosa do que acreditava.

Os prazeres corporais, do mesmo modo, não proporcionam a felicidade, pois são momentâneos e nos tornam parecidos com os animais, nos escravizando e depreciando nosso caráter. Nos abatemos pela sedução dos prazeres corporais que são fugazes, e que não possibilitam o encontro com a felicidade. Esses prazeres da aparência nos levam a uma experiência imperfeita e inconstante da multiplicidade e da fragmentação. Boécio nos indica que o caminho da felicidade é o do bem simples, perfeito e indiviso.

"Em seu diálogo com a Filosofia, portanto, ele é levado, pouco a pouco, a desvencilhar-se das lembranças inoportunas da vida que outrora tivera, repleta de aparências, em que julgava e tomava a riqueza, a honra, o poder, a glória e o prazer como a verdadeira felicidade. Mais sereno frente à sua condição, ouve a argumentação da Filosofia, que pretende consolá-lo e levá-lo a perceber o que seja a verdadeira felicidade, através da demonstração da incapacidade dos bens externos, das coisas temporais, como condições para satisfazer o desejo da alma humana." (SANGALLI, 2014)

O sábio, de acordo com Boécio, é aquele que não é enganado nem se perturba, pois sabe o que vale e o que não vale a pena se importar, por meio do uso de uma sabedoria prática em favor de uma vida serena, digna e feliz. É preciso procurar no interior de sua alma a verdade, conquistando sua liberdade para se autodeterminar e ter controle sobre si mesmo. Assim, não terá mais de se preocupar com os infortúnios da vida, como a prisão ou a tortura, pois entenderá que a verdadeira liberdade está no interior da alma.

Para alcançar o Bem Supremo, é necessário trilhar o caminho da interioridade da alma humana, somente assim é possível ser feliz. Trata-se de uma reconquista da dignidade humana em seu aspecto racional, caracterizada por sua autodeterminação, pelo controle de si e pela escolha da prática do bem. É preciso abrir os olhos, que foram cegados pelas coisas que fizeram perder a razão. Assim, retoma a importância de vivermos segundo a própria natureza, se abalando pelas paixões humanas e pelos impulsos excessivos, sendo conduzida pela racionalidade.

"A Sabedoria consiste em avaliar a finalidade de todas as coisas. Logo, para saber avaliar corretamente qual é o fim de todas as coisas, faz-se necessário reconhecer-se como um ser racional e fazer uso dessa natureza. Desta forma, podemos compreender que a noção de virtude no sistema boeciano aproxima-se muito da concepção estóica. Concepção esta que entende o homem como um ser naturalmente racional e pertencente a um ordenamento cósmico. Assim, destacando que o fim último do ser humano é viver segundo aquilo que é, ou seja, viver segundo sua natureza e, consequentemente, sua natureza racional implica em viver em acordo com a virtude." (NASCIMENTO, 2016)

A medicina da alma, na consolação de Boécio, propõe uma confiança na racionalidade, de não deixar se perturbar pelas paixões e pela transitoriedade das coisas mundanas e as adversidades da vida, que devem servir como estímulo para o caminho da virtude, buscando fazer o pleno uso da razão para reconhecer de onde as coisas vêm e para onde tendem, avaliando o fim de cada coisa. 


Por Bruno Carrasco.

Referências Bibliográficas:

NASCIMENTO, Marlo do. Boécio e a consolação da filosofia: considerações acerca da virtude. Intuitio, 9, 68-81.  2016. Acesso em: 10 jun. 2021.
SANGALLI, Idalgo José. A conquista da felicidade via filosofia: o exemplo de Boécio. Trans/Form/Ação, Marília, v. 37, n. 3, pp. 65-86, set./dez., 2014. Acesso em: 10 jun. 2021.
SAVIAN FILHO, Juvenal. A busca da unidade interior. Revista Cult. Acesso em: 10 jun. 2021.

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