A sabedoria do corpo em Nietzsche

Estamos acostumados a encarar a filosofia como uma experiência do pensamento, que parte exclusivamente da razão. Porém, Friedrich Nietzsche propõe outra perspectiva: filosofar a partir do corpo, das forças, das potências e dos impulsos. Assim, a filosofia deixa de ser uma mera atividade de pensamento ou da abstração, para se tornar algo a ser sentido e experimentado.

Segundo ele, a filosofia parte sempre de um corpo, podendo servir tanto para sua ampliação quanto para sua conservação ou decadência. Em sua filosofia ele opera uma revaloração do corpo enquanto potência de vida. Neste sentido, ao invés de buscar verdades últimas, ideais e metafísicas, torna-se mais importante valorizar os impulsos e afirmar a vida.

O corpo, que na história da filosofia foi tomado por muito tempo como o que nos conduz ao engano e ao erro, passa a ser entendido por Nietzsche como uma verdade ao nível singular, que possibilita uma multiplicidade de perspectivas, sempre em processo e transformação. Deste modo, ele rompe com a busca da verdade ou da unidade, para valorizar o corpo e as vivências.

"Tomar o corpo como ponto de partida e fazer dele o fio condutor, eis o essencial. O corpo é um fenômeno muito mais rico e que autoriza observações mais claras. A crença no corpo é bem melhor estabelecida do que a crença no espírito."
(Nietzsche, em 'Fragmentos Póstumos')

Neste sentido, ele afirma o corpo e a vida em sua beleza e em seu caos, entendendo este como mais importante, e mais interessante do que a razão ou a verdade. Toma-se então o corpo como ponto de partida, que conduz às observações mais claras sobre nós mesmos, revalorando os sentidos, instintos e as intuições, habilitando a crença no corpo ao invés da crença no espírito, na alma ou na razão.

Sua proposta consiste em colocar a verdade e o conhecimento em favor da vida, e não contra ela, relacionando aquilo que promove a vida com o corpo, os instintos, as emoções, a música e a arte, de modo bem distinto da tradição filosófica que valorizava a razão, o pensamento e a verdade. A experiência passa a ser mais importante do que a busca da verdade, porque toma como prioridade a vida, ao invés da verdade.

"Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido - ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo habita ele, teu corpo é ele. Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria."
(Nietzsche, em 'Assim falou Zaratustra')

Para Nietzsche, os impulsos são mais fortes e potentes do que a razão, inclusive se desenvolvem antes do que a consciência. A consciência, ou a razão é apenas um elemento do corpo, inclusive mais deficitário e de menor importância que os impulsos e experiências. Sua filosofia retoma o valor dos afetos e das paixões, entendendo estes como favoráveis a uma vida mais intensa e forte.

"O corpo não é somente superior à consciência: é anterior."
(Rosa Dias, em 'Nietzsche, vida como obra de arte')

Com isso, o filósofo alemão entende que a filosofia não é um mero exercício da razão, mas algo que parte de um corpo, dos impulsos, dos sentidos e dos afetos. O corpo tem uma prioridade sobre a razão, então ele propõe uma filosofia de afirmação da vida, que corresponde a um "dizer sim" ao que amplia a experiência e "desviar o olhar" do que a diminui.

O corpo, para Nietzsche, é mais inteligente que a consciência, muito mais fino e perceptivo, justamente por sua complexidade. A mente, entendida como superior na história da filosofia, é apenas um dos elementos do corpo. A vida não pode ser equacionada e explicada apenas por meio da razão, mas é algo a ser experimentado pelo corpo.

"'Eu sou corpo e alma'. (...) A alma é somente uma palavra para alguma coisa no corpo."
(Nietzsche, em 'Assim falou Zaratustra')

Isso significa que, quando estamos numa situação difícil, ao invés de utilizar a razão, podemos perceber nosso corpo e impulsos, e o que eles nos têm a dizer. Muitas vezes a razão e a consciência nos dizem para fazer algo já previamente determinado diante de uma situação, segundo uma conveniência social, mas isso nem sempre é o melhor a ser feito para a experiência de nosso corpo.

Nosso corpo tem algo que é pessoal, singular, específico a nós mesmos. Por exemplo: uma pessoa diante da possibilidade de subir de cargo numa empresa, ganhar um pouco mais e adquirir um maior status, características que socialmente parecem de imediato boas, não significa que essa experiência será boa para essa pessoa. Não é a razão que vai dizer isso, mas o corpo que sente, afetado pela experiência.


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
DIAS, Rosa. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
GIACOIA JÚNIOR, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo: Publifolha, 2000.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. São Paulo: Paz e Terra, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

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