No Café Existencialista - Sarah Bakewell

O livro "No Café Existencialista", escrito sob a forma de romance, pela autora britânica Sarah Bakewell (1962-), oferece uma introdução sobre o existencialismo e a fenomenologia, principalmente para aqueles que possuem dificuldade de compreender os autores e temas existencialistas.

Sarah Bakewell conta a história do existencialismo moderno como um encontro apaixonado entre pessoas, mentes e ideias. De Sartre e Simone de Beauvoir ao seu círculo mais amplo de amigos e adversários, incluindo Albert Camus, Martin Heidegger, Maurice Merleau-Ponty e Iris Murdoch, No café existencialista é uma agradável jornada pelas correntes políticas, artísticas e sociais que moldaram o movimento intelectual que fascinou Paris e percorreu o mundo - um modo de pensar que até hoje nos afeta profundamente.

Confira abaixo alguns fragmentos dos primeiros capítulos do livro, disponível para apreciação gratuita no site da Amazon:

Os filósofos tradicionais costumavam começar por teorias ou axiomas abstratos, mas os fenomenólogos alemães iam direto à vida como a viviam a cada momento. Deixavam de lado quase tudo o que vinha alimentando a filosofia desde Platão: enigmas sobre a realidade das coisas ou sobre a possibilidade de conhecermos com certeza alguma coisa sobre elas. Esses fenomenólogos alemães, em vez disso, ressaltavam que qualquer filósofo que faça tais perguntas já está inserido num mundo cheio de coisas - ou, pelo menos, cheio de aparências de coisas ou "fenômenos" (da palavra grega que significa "coisas que aparecem"). Então por que não se concentrar nesse encontro com os fenômenos e ignorar o resto?

O principal pensador dos fenomenólogos, Edmund Husserl, formulou o grande lema: "Voltar às coisas mesmas!". Significava: não perca tempo com as interpretações que vão se somando às coisas e, principalmente, não perca tempo perguntando se as coisas são reais. Apenas olhe para isso que se apresenta a você e descreva esse isso, seja o que for, com a máxima precisão possível. Outro fenomenólogo, Martin Heidegger, acrescentou mais uma volta. Ao longo de toda a história, os filósofos ficaram perdendo tempo com questões secundárias, dizia ele, esquecendo-se de responder à mais importante, a questão do Ser. O que é ser, para uma coisa? O que significa dizer que você é? Heidegger argumentava que, enquanto não respondermos a essa pergunta, nunca chegaremos a lugar nenhum. E recomendava o método fenomenológico: desconsidere o acúmulo intelectual; preste atenção nas coisas e deixe que elas se revelem a você.

Era uma maneira de filosofar que reconectava a filosofia com a experiência normal, vivida.

Sartre tomou as providências necessárias, o verão terminou, e lá foi ele estudar em Berlim. Quando voltou, ao cabo de um ano, trouxe uma nova mistura: os métodos da fenomenologia alemã, aos quais juntou ideias anteriores do filósofo dinamarquês Søren Kierkegaard e o tempero tipicamente francês de sua sensibilidade literária própria. Aplicou a fenomenologia à vida das pessoas de uma maneira pessoal e mais empolgante do que jamais seus inventores sequer imaginaram fazer, e assim se tornou o criador de uma filosofia que teve impacto internacional, mas mantendo o sabor parisiense: o existencialismo moderno.

Em seus romances, contos e peças , tal como nos ensaios filosóficos, ele discorria sobre as sensações físicas do mundo e as estruturas e os estados de espírito da vida humana . E, acima de tudo, sobre um grande tema: o que significava ser livre.

A liberdade, para ele, estava no cerne de toda a experiência humana, e era isso que diferenciava os seres humanos de todas as outras espécies de objetos. As outras coisas simplesmente ficam no lugar, esperando ser puxadas ou empurradas. Mesmo os animais não humanos seguem basicamente os instintos e comportamentos que caracterizam sua espécie, segundo Sartre. Mas, como ser humano, não tenho nenhuma natureza previamente definida. Crio essa natureza conforme escolho o que fazer. Claro que posso ter a influência de minha biologia ou de aspectos de minha cultura e formação pessoal, mas nada disso forma um esquema completo que produzirá o que sou. Estou sempre um passo adiante de mim mesmo, criando-me à medida que prossigo.

Mesmo que a situação seja insuportável — talvez você esteja para ser executado ou se encontre numa prisão da Gestapo ou à beira de um precipício —, você ainda é livre para decidir como lidar com isso em pensamento e ação . Partindo de onde está agora, você escolhe. E, ao escolher, também escolhe quem você será.

Søren Kierkegaard, nascido em Copenhague em 1813, deu o tom ao utilizar "existencial" numa nova acepção, para designar a reflexão sobre os problemas da existência humana. Utilizou o termo no longo título de um trabalho de 1846: Pós-escrito conclusivo não científico às migalhas filosóficas: uma compilação mímico-patético-dialética: uma contribuição existencial.

Kierkegaard era um provocador nato. Arrumava briga com os contemporâneos, rompia relações pessoais e, de modo geral, criava dificuldade em tudo. Escreveu ele: "A abstração é desinteressada, mas, para quem existe, seu existir é o interesse supremo".

A seu ver, a existência humana vem antes: é o ponto de partida para tudo o que fazemos, e não o resultado de uma dedução lógica. Minha existência é ativa: vivo-a, escolho-a, e isso precede qualquer afirmação que eu possa fazer sobre mim mesma. Além disso, minha existência é minha: é pessoal. O "eu" de Descartes é genérico: pode se aplicar a qualquer um, mas o "eu" de Kierkegaard é o "eu" de um desajustado polêmico e angustiado.

Kierkegaard pensava que a resposta à "angústia" era dar um salto de fé nos braços de Deus, mesmo sem ter muita certeza de que Ele estaria ali. Era um mergulho no "Absurdo" - naquilo que não pode ser provado nem justificado racionalmente.

Nietzsche e Kierkegaard foram os arautos do existencialismo moderno. Pioneiros num estado de espírito rebelde e insatisfeito, criaram uma nova definição da existência como escolha, ação e autoafirmação e empreenderam um estudo da angústia e da dificuldade da vida. Também operaram na convicção de que a filosofia não era apenas uma profissão. Era a própria vida - a vida de um indivíduo.

Sartre era um elo que os ligava a toda a linhagem de rebeldes filosóficos: Nietzsche, Kierkegaard e os demais. Sartre era a ponte para todas as tradições que pilhou, modernizou, personalizou e reinventou. Mas, durante toda a sua vida, ele insistiu que o importante não era o passado, de forma alguma: era o futuro. É preciso estar sempre em movimento, criando o que será: agir no mundo, deixar uma marca.

Talvez estejamos prontos para voltar a falar de liberdade - e falar sobre ela de maneira política também significa falar sobre ela em nossa vida pessoal. É por isso que, lendo Sartre sobre a liberdade, Beauvoir sobre os sutis mecanismos de opressão, Kierkegaard sobre a angústia, Camus sobre a revolta, Heidegger sobre a tecnologia ou Merleau-Ponty sobre as ciências cognitivas, às vezes nos sentimos como se estivéssemos lendo as novidades mais recentes. Suas filosofias continuam a ser de interesse, não porque sejam certas ou erradas, mas porque dizem respeito à vida e se detêm nas duas maiores perguntas humanas: Quem somos nós? O que devemos fazer?

O existencialismo de Sartre e de Beauvoir atingiu a maioridade durante a Segunda Guerra Mundial, com a experiência francesa da derrota e da ocupação, e seguiu em frente a velas pandas com enormes expectativas para o mundo pós-1945. Ideias existencialistas entraram na onda crescente de anticonformismo dos anos 1950 e, depois, no idealismo plenamente desabrochado do final dos anos 1960. Ao longo de tudo isso, os existencialistas mudavam suas ideias conforme mudava o mundo; com suas guinadas constantes - e nem sempre do lado certo, para dizer o mínimo -, eles continuavam, se não coerentes, pelo menos interessantes.

Os existencialistas se interessam pela existência humana concreta e individual. Eles consideram a existência humana diferente das outras coisas, na espécie de ser que têm. Outras entidades são o que são, mas, como ser humano, sou o que escolho fazer de mim mesmo a cada momento. Sou livre e, portanto, responsável por tudo o que faço, fato atordoante que causa uma angústia indissociável da própria existência humana. Por outro lado, só sou livre dentro de situações, que podem incluir fatores de minha biologia e psicologia, bem como variáveis físicas, históricas e sociais do mundo a que fui lançada. Apesar das limitações, sempre quero mais: estou apaixonadamente envolvida em projetos pessoais de todas as espécies. Assim, a existência humana é ambígua: encerrada dentro de limites, mas ao mesmo tempo transcendente e divertida. Um existencialista que também é fenomenólogo não oferece regras fáceis para lidar com essa condição, mas se concentra em descrever a experiência vivida, tal como ela se apresenta. Ao descrever bem a experiência, ele espera entender essa existência e nos despertar para modos de viver vidas mais autênticas.

A filosofia de Husserl se tornou uma disciplina exaustiva, mas estimulante, em que é preciso renovar constantemente o esforço e a concentração. Para praticá-la, disse ele, “é necessário um novo modo de olhar as coisas" - um modo que nos remeta incessantemente a nosso projeto, "para ver, distinguir, descrever o que está diante de nossos olhos". Este era o estilo natural de trabalho de Husserl. Era também uma definição perfeita da fenomenologia. Então, o que é exatamente a fenomenologia? É essencialmente um método e não um conjunto de teorias, e sua abordagem básica pode ser resumida - ao risco de uma simplificação extrema - em duas palavras: DESCREVER FENÔMENOS. A primeira parte desse preceito é muito direta: a tarefa do fenomenólogo é descrever. É essa a atividade que Husserl recomendava incessantemente a seus alunos. Significava despir-se de distrações, hábitos, ideias feitas, pressupostos e clichês mentais a fim de dedicar a atenção ao que ele chamava de "as coisas mesmas". Devemos olhá-las de olhos bem abertos e capturá-las exatamente como aparecem, e não como pensamos que supostamente seriam. As coisas que descrevemos com tanto cuidado se chamam fenômenos - o segundo elemento da definição. A palavra "fenômeno" tem um sentido específico para os fenomenólogos: designa qualquer coisa, objeto ou ocorrência comum tal como se apresenta à minha experiência, e não como pode ser ou deixar de ser na realidade. Como exemplo, pegue-se uma xícara de café. O que é, então, uma xícara de café? Posso definir a bebida em termos da química e da botânica da planta, acrescentar resumidamente como os grãos são cultivados e exportados, como são moídos, como a água quente passa pelo pó e então esse líquido é vertido num recipiente de determinado formato, para ser apresentado a um integrante da espécie humana que o ingere oralmente. Posso analisar o efeito da cafeína no corpo ou abordar o comércio internacional do café. Posso encher uma enciclopédia com esses fatos e ainda assim estarei longe de dizer o que é esta xícara de café em particular, à minha frente. Por outro lado, se procedo ao inverso e invoco um leque de associações puramente pessoais e sentimentais, isso tampouco me permite entender essa xícara de café como um fenômeno imediatamente dado. Em vez disso, essa xícara de café é um aroma rico, ao mesmo tempo agreste e perfumado; é o movimento indolente de uma voluta de vapor erguendo-se de sua superfície. Quando o levo à boca, é um líquido que se move placidamente e um peso dentro da xícara de bordas grossas em minha mão. É um calor que se aproxima, então um intenso sabor carregado em minha língua, começando com um impacto levemente austero e então se distendendo num calor reconfortante, que se espalha da xícara para meu corpo, trazendo a promessa de um estado duradouro de alerta e revigoramento. A promessa, as sensações antecipadas, o cheiro, a cor e o sabor fazem, todos eles, parte do café como fenômeno. Todos emergem ao serem experimentados. Se eu tratasse todos esses aspectos como elementos puramente "subjetivos" a serem descartados para ser "objetiva" em relação a meu café, concluiria que não restou nada de minha xícara de café enquanto fenômeno - isto é, como ele aparece na minha experiência como consumidora de café. Essa xícara de café experiencial é a única da qual posso falar com certeza, enquanto todas as outras coisas referentes à cafeicultura e à química são por ouvir dizer. Tudo isso por ouvir dizer pode ser interessante, mas, para um fenomenólogo, não vem ao caso. Então Husserl diz que, para descrever fenomenologicamente uma xícara de café, devo deixar de lado as suposições abstratas e qualquer associação emocional invasiva. Aí posso me concentrar no fenômeno escuro, perfumado, rico, agora à minha frente. A esse "deixar de lado" ou "pôr entre parênteses" os acréscimos especulativos, Husserl chamava de "epoché". Às vezes, Husserl se referia também a uma "redução" fenomenológica: o processo de reduzir a teorização adicional sobre o que o café "realmente" é, até que nos reste apenas o sabor intenso e imediato - o fenômeno. O resultado é uma grande libertação. A fenomenologia me libera para falar sobre o café de minha experiência como tema sério de investigação. Também me libera para falar sobre muitas áreas que surgem apenas quando discutidas fenomenologicamente.

Se quero comentar com você sobre uma música de dilacerar o coração, a fenomenologia me permite descrevê-la como uma música comovente, em vez de uma série de vibrações de cordas e relações matemáticas entre notas sobre as quais anexo uma emoção pessoal. Uma música triste é triste; uma canção doce é doce; são descrições fundamentais para o que é a música. De fato, o tempo todo falamos de música fenomenologicamente. Mesmo se descrevo uma sequência de notas "subindo" ou "descendo", isso tem menos a ver com o movimento das ondas sonoras (de frequência maior ou menor, mais longas ou mais curtas) do que com a aparição da música em minha mente. Ouço as notas subindo uma escada invisível.

A fenomenologia é útil para falar sobre experiências místicas ou religiosas: podemos descrevê-las como se fazem sentir interiormente sem ter de provar que elas representam o mundo com precisão. Por razões semelhantes, a fenomenologia ajuda os médicos. Permite-lhes avaliar os sintomas médicos tal como são vivenciados pelo paciente, e não como processos físicos exclusivos. Um paciente pode descrever uma dor difusa ou penetrante, uma sensação de peso ou lerdeza ou um vago mal-estar no estômago. Os amputados muitas vezes têm sensações “fantasmas”na área do membro perdido; a fenomenologia permite a análise dessas sensações.

Um fenomenólogo não pode se dar por satisfeito dizendo, ao ouvir uma música: "Que bonita!". Precisa indagar: é chorosa? É sóbria? É imponente e sublime? A questão é voltar sempre às "coisas mesmas" - aos fenômenos despidos de sua bagagem conceitual - para remover elementos fracos ou estranhos e chegar ao cerne da experiência. Talvez nunca sejamos capazes de descrever totalmente uma xícara de café. Mas é uma tarefa libertadora: devolve-nos o mundo em que vivemos.

Há outro efeito colateral: em teoria, a fenomenologia deve nos libertar das ideologias políticas e outras. Obrigando-nos a ser leais com a experiência e a evitar as autoridades que procuram influenciar nossa interpretação dessa experiência.

Essa mescla de entusiasmo e perplexidade ficou evidente na reação de um jovem alemão que descobriu a fenomenologia em seus primeiros tempos: Karl Jaspers. Em 1913, ele trabalhava como pesquisador na Clínica de Psiquiatria de Heidelberg, tendo preferido a psicologia à filosofia porque gostava de sua abordagem concreta e aplicada. A filosofia lhe parecia ter perdido o rumo, ao passo que a psicologia, com seus métodos experimentais, produzia resultados definidos. Mas aí ele descobriu que a psicologia era bem-acabada demais: faltava-lhe a ambição grandiosa da filosofia. Nenhuma das duas satisfazia a Jaspers. Então ele ouviu falar da fenomenologia, que oferecia o melhor de ambas: um método aplicado, junto com a grande meta filosófica de compreender a totalidade da vida e da experiência. Escreveu uma carta entusiástica a Husserl, embora admitindo que ainda não tinha muita certeza do que era a fenomenologia. Husserl respondeu: "O senhor está usando o método perfeitamente. Apenas continue. Não precisa saber o que é; esta, de fato, é uma questão difícil". Numa carta aos pais, Jaspers aventou que tampouco Husserl sabia o que era a fenomenologia. No entanto, a incerteza não diminuía o entusiasmo. Como toda filosofia, a fenomenologia demandava muito de seus praticantes. Exigia "um pensamento diferente", escreveu Jaspers: "um pensamento que, no conhecer, lembra-me, desperta-me, traz-me a mim mesmo, transforma-me". Fazia tudo isso e também dava resultados. Além de dizerem transformar a maneira de pensarmos a realidade, os fenomenólogos prometiam mudar a maneira de pensarmos a nós mesmos. Acreditavam que não devíamos tentar descobrir o que é a mente humana, como se fosse uma espécie de substância. Em lugar disso, devíamos considerar o que ela faz e como capta suas experiências.

Num rápido parágrafo em seu livro Psicologia do ponto de vista empírico, Brentano propunha que abordássemos a mente em termos de suas "intenções" - palavra enganosa, pois parece se referir a propósitos deliberados. Em vez disso, intenção significava uma ação geral de tender ou estender, da raiz latina in-tend, dirigir-se a ou para dentro de alguma coisa. Para Brentano, esse se estender aos objetos é o que nossa mente faz o tempo todo. Nossos pensamentos, invariavelmente, são com ou sobre alguma coisa, dizia ele: no amor, algo é amado; no ódio, algo é odiado; no julgamento, algo é afirmado ou negado. Mesmo quando imagino um objeto que não está ali, minha estrutura mental ainda opera em termos de "sobre" ou "acerca de". Se sonho que um coelho branco passa por mim olhando seu relógio de bolso, estou sonhando sobre meu coelho onírico de fantasia. Se olho para o teto tentando entender a estrutura da consciência, estou pensando acerca da estrutura da consciência. Exceto no sono mais profundo, minha mente está sempre ocupada com esse sobre: ela tem "intencionalidade". Tomando seu germe a Brentano, Husserl lhe deu lugar central em toda a sua filosofia.


Fonte:
BAKEWELL, Sarah. No café existencialista: O retrato da época em que a filosofia, a sensualidade e a rebeldia andavam juntas. Objetiva, 2017.