Doença Mental e Psicologia - Foucault


O livro "Doença Mental e Psicologia", escrito pelo filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) apresenta novos olhares pra a doença mental.

Em sua primeira parte reflete sobre as dimensões psicológicas da doença, traçando a relação entre a doença e evolução, a doença e história individual e a doença e a existência. Na segunda parte estabelece uma relação entre loucura e cultura, comentando sobre a constituição histórica da doença mental e a loucura como uma estrutura global.

Trata-se de uma obra fundamental para compreender o entendimento contemporâneo sobre a loucura e a doença mental.


Segue abaixo alguns fragmentos:

Como a medicina orgânica, a medicina mental tentou, inicialmente, decifrar a essência da doença no agrupamento coerente dos sinais que a indicam.

Postula-se, inicialmente, que a doença é uma essência, uma entidade específica indicada pelos sintomas que a manifestam, mas anterior a eles, e de um certo modo independente deles.

Se se define a doença mental com os mesmos métodos conceptuais da doença  orgânica, se se isolam e reúnem sintomas psicológicos e sintomas  fisiológicos, é principalmente porque se considera a doença, mental ou orgânica, como uma essência natural manifestada por sintomas específicos. Entre essas duas formas de patologia não há, portanto, unidade real, mas somente, por intermédio desses dois postulados, um paralelismo abstrato. Ora, o problema da unidade humana e da totalidade psicossomática continua totalmente em aberto.

A doença como realidade independente tende a apagar-se, e renunciou-se a fazê-la desempenhar o papel de uma espécie natural a respeito dos sintomas  e o papel de um corpo estranho a respeito do organismo. Pelo contrário, privilegiam-se as reações globais do indivíduo; entre o processo mórbido e o funcionamento geral do organismo, a doença já não se interpõe como uma realidade autônoma, já só é concebida como um corte abstrato no devir do indivíduo doente.

Independentemente de as suas designações principais serem psicológicas ou orgânicas, a doença dirá respeito, em todo o caso, à situação global  do indivíduo no mundo; em vez de ter uma essência  fisiológica ou psicológica, é uma reação geral do indivíduo considerado na sua totalidade psicológica e fisiológica. Em todas essas formas recentes de análise médica, pode, pois, fazer-se a leitura de uma significação única: quanto mais se encara como um  todo a unidade do ser humano, mais se dissipa a realidade de uma doença que será unidade específica; e, para substituir a análise das formas naturais da doença, impõe-se ainda mais a descrição do indivíduo que reage patologicamente à sua situação.

A patologia mental exige métodos de análise diferentes dos da patologia orgânica.

Nenhuma doença pode, decerto, ser separada dos métodos de diagnóstico, dos  processos de isolamento e dos instrumentos terapêuticos com que a prática médica a envolve.

Dando crédito ao próprio ser humano e não às abstrações sobre a doença, convém, pois, analisar a especificidade  da doença mental, investigar as formas concretas que a Psicologia pôde atribuir-lhe, determinando depois as condições que tornaram possível esse estranho estatuto da loucura, doença mental irredutível a qualquer doença.

Não se deve então ler a patologia mental no texto demasiado simples das funções abolidas: a doença não é somente perda da consciência, entorpecimento de tal função, obnubilação de tal faculdade. No seu corte abstrato, a psicologia do século XIX incitava esta descrição puramente negativa da doença; e a semiologia de cada uma era muito fácil: limitava-se a descrever as aptidões desaparecidas; a enumerar, nas amnésias, as lembranças esquecidas, a pormenorizar nos desdobramentos de personalidades as sínteses tornadas impossíveis. De fato, a doença apaga, mas sublinha; abole de um lado, mas é para exaltar do outro; a essência da doença não está somente no vazio criado, mas também na plenitude positiva das atividades de substituição que vem preenchê-lo.

Uma descrição estrutural da doença deveria, então, para cada síndrome, analisar os sinais positivos e negativos, isto é, detalhar as estruturas abolidas e as estruturas realçadas.

É, então, necessário conduzir a análise além; e completar esta dimensão evolutiva, virtual e estrutural da doença, pela análise desta dimensão que a torna necessária, significativa e histórica.

A doença tem como conteúdo o conjunto das reações de fuga e de defesa através das quais o doente responde a situação na qual se encontra; e é a partir deste presente, desta situação atual que é preciso compreender e dar sentido as regressões evolutivas que surgem nas condutas patológicas; a regressão não é semente uma virtualidade da evolução, é uma consequência da história.

Assim como o medo é reação ao perigo exterior, a angústia é a dimensão afetiva desta contradição interna.

É a angústia também, como prova psicológica da contradição interior, que serve de denominador comum e que dá uma significação única ao devir psicológico de um indivíduo.

A psicologia da evolução, que descreve os sintomas como condutas arcaicas, deve, então, ser completada por uma psicologia da gênese que descreve, numa história, o sentido atual destas regressões. É preciso encontrar um estilo de coerência psicológica que autorize a compreensão dos fenômenos mórbidos sem tomar como modelo de referência estágios descritos a maneira de fases biológicas. É necessário encontrar o centro das significações psicológicas a partir do qual, historicamente, ordenam-se as condutas mórbidas.

A análise naturalista encara o doente com o distanciamento de um objeto natural; a reflexão histórica guarda-o nesta alteridade que permite explicar, mas raramente compreender. A intuição, penetrando na consciência mórbida, procura ver o mundo patológico com os olhos do próprio doente: a verdade que busca não é da ordem da objetividade, mas da intersubjetividade.

Na medida em que compreender quer dizer, ao mesmo tempo, reunir, apreender de pronto, e penetrar, esta nova reflexão sobre a doença é, antes de tudo, "compreensão": foi este o método usado pela psicologia fenomenológica.

Compreensão da consciência doente, e reconstituição do seu universo patológico, tais são as duas tarefas de uma fenomenologia da doença mental.

A acumulação do passado não pode mais, para ele, liquidar-se; e, correlativamente, o passado e o presente não conseguem antecipar o futuro; nenhuma segurança adquirida pode servir de garantia contra as ameaças que ele contém; no futuro, tudo é absurdamente possível.

A análise fenomenológica recusa uma distinção a priori entre o normal e o patológico: "A validade das descrições fenomenológicas não está limitada por um julgamento sobre o normal e o anormal" (R. Kuhn, "Mordversuch eines depressiven Fetichisten", Monatschrift fur Psychiatrie, 1948).

Boutroux dizia, no seu vocabulário, que as leis psicológicas, mesmo as mais gerais, são relativas a uma "fase da humanidade". Um fato tornou-se, há muito tempo, o lugar comum da sociologia e da patologia mental: a doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal.

Foi numa época relativamente recente que o Ocidente concedeu à loucura um status de doença mental.

Nos meados do século XVII, brusca mudança; o mundo da loucura vai tornar-se o mundo da exclusão.

Criam-se (e isto em toda a Europa) estabelecimentos para internação que não são simplesmente destinados a receber os loucos, mas toda uma série de indivíduos bastante diferentes uns dos outros, pelo menos segundo nossos critérios de percepção: encerram-se os inválidos pobres, os velhos na miséria, os mendigos, os desempregados opiniáticos, os portadores de doenças venéreas, libertinos de toda espécie, pessoas a quem a família ou o poder real querem evitar um castigo público, pais de família dissipadores, eclesiásticos em infração, em resumo todos aqueles que, em relação à ordem da razão, da moral e da sociedade, dão mostras de “alteração”. É com este espírito que o governo abre, em Paris, o Hospital geral, com Bicetre e la Salpetrière; um pouco antes são Vicente de Paula tinha feito do antigo leprosário de Saint-Lazare uma prisão deste gênero, e logo depois Charenton, inicialmente hospital, alinhar-se-à nos modelos destas novas instituições. Na França, cada grande cidade terá seu Hospital Geral.

Estas casas não têm vocação médica alguma; não se é admitido aí para ser tratado, mas porque não se pode ou não se deve mais fazer parte da sociedade. O internamento que o louco, juntamente com muitos outros, recebe na época clássica não põe em questão as relações da loucura com a doença, mas as relações da sociedade consigo própria, com o que ela reconhece ou não na conduta dos indivíduos.

A loucura é muito mais histórica do que se acredita geralmente, mas muito mais jovem também.

Toda a estrutura epistemológica da psicologia contemporânea consolida-se neste acontecimento que é aproximadamente contemporâneo da Revolução, e que concerne à relação do homem consigo próprio.

Nunca a psicologia poderá dizer a verdade sobre a loucura, já que é esta que detém a verdade da psicologia.

De fato, quando o homem permanece estranho ao que se passa na sua linguagem, quando não pode reconhecer significação humana e viva nas produções de sua atividade, quando as determinações econômicas e sociais o reprimem, sem que  possa encontrar sua pátria neste mundo, então ele vive num mundo real, é enviado a um “mundo  privado”, que objetividade nenhuma pode mais garantir,   submetido, entretanto, ao constrangimento deste mundo real, ele experimenta  este universo para o qual foge, como um destino. O mundo contemporâneo torna possível a esquizofrenia, não porque seus acontecimentos o tornam inumano a abstrato, mas porque nossa cultura faz do mundo uma leitura tal que o próprio homem não pode reconhecer-se aí.


Referência:
Foucault, Michel. Doença Mental e Psicologia. 6 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.