Vida e criação em Nietzsche

Friedrich Nietzsche, por Edvard Munch, 1906

Friedrich Nietzsche (1844-1900) foi um filósofo que destacou a afirmação da vida enquanto potência criativa, entendendo a vida como um processo de transformação e criação constante, como uma vontade de potência, expansão e ampliação, uma vontade criadora e plástica, contrária à adaptação ou conservação.

Nietzsche entende a vida como uma constante criação, que acontece em devir, se transformando a todo momento. Quando não nos colocamos ativamente criando, permanecemos apenas no papel de reprodutores. A atividade de criação é entendida no sentido de transformar e gerar algo distinto, ampliando possibilidades de vida.

A criação necessita da destruição, onde se desfaz o que está num momento para que seja possível surgir algo novo. Segue num sentido contrário da manutenção, impedindo que a existência se fixe em algo. Contrário à conservação, a vontade de criação está sempre se autoinventando, privilegiando a atividade ao invés da passividade ou reprodução.

"Aquele que quebra suas tábuas de valores, o quebrador, o infrator: - mas este é o criador."
(Nietzsche, em 'Assim falou Zaratustra')

Essa perspectiva se opõe totalmente à metafísica platônica, que busca o estável e o permanente, e destaca as essências e os ideais, entendendo que estes existem independentes das pessoas. Nietzsche prioriza a vida, a ação, a mutabilidade das coisas e o fluxo constante da transformação e impermanência, onde tudo se desfaz e se refaz, se cria e se destrói, onde nada está acabado.

Nietzsche entende a realidade enquanto processo, onde a criação não depende de uma falta, como entendem os psicanalistas, mas é inerente à vontade de potência, de expandir e gerar novos modos de pensamento e de vida. Assim, não há vida sem criação, pois nada está dado, tudo é criado. Uma criação diferente dos idealistas, mas uma criação que parte da vida, e atua em favor da vida.

"A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade, através dela a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus instintos mais básicos."
(Nietzsche, em 'Ecce Homo')

Aqueles que defendem os ideais se colocam contrários à vida e ao corpo, pois defendem o pensamento ideal, se distanciando da vida e da possibilidade de inventar novos modos de vida possíveis. Os idealistas são aqueles que estabelecem ideais e passam a vida buscando alcançá-los a todo custo, sua ação não é uma criação, mas adequação a um modelo de vida para se conservar.

Para Nietzsche, a criação tem uma característica de transformação, que não indica um caminho a ser seguido, mas se abre à experimentação de distintos caminhos possíveis. Para o filósofo, a busca de um ideal é uma fraqueza que empobrece a existência, enfraquecendo a capacidade criadora da vida. As metas, os objetivos e a vida que se "pretende" alcançar, não são um modo de criação, mas uma adaptação e conservação a um modelo de vida ideal.

A criação em Nietzsche é o contrário da conservação, envolve algo que se cria e se perde, que se cria para se perder, não é algo para durar eternamente, mas algo que contém sempre a capacidade e a possibilidade de se destruir. A vontade criadora tende ao aumento da potência de criar, de crescer e se expandir, deste modo afirma a vida em suas qualidades de impermanência, mutabilidade e destruição.

"Sim, para o jogo de criar, meus irmãos, é preciso um sagrado dizer-sim: sua vontade quer agora o espírito, seu mundo ganha para si o perdido mundo."
(Nietzsche, em 'Assim falou Zaratustra')

Sem a destruição não há criação, portanto o destruir é tão importante quanto o criar. A vontade criadora acontece em devir, onde não há um começo nem um fim, mas constante transformação, portanto está sempre sujeita à se perder, deteriorar e desfazer. Para Nietzsche, a realidade é o devir e a transitoriedade, não há um mundo aparente e um mundo ideal, como em Platão, mas apenas o mundo transitório.

Contrário à vontade conservadora, Nietzsche afirma a vontade criadora, que acontece no tempo e que diz "sim" à vida, do modo como esta acontece, com toda sua feiura e beleza, com todo o caos e ordem, com toda a verdade e a mentira, com toda justiça e o injustiça, com todo sanidade e loucura, onde não há nada fixo, onde tudo está sempre se criando e se destruindo no presente, em movimento e acaso.

"Mutação dos valores - essa é a mutação daqueles que criam. Sempre aniquila, quem quer ser um criador."
(Nietzsche, em 'Assim falou Zaratustra')

Por isso, Nietzsche dá maior importância ao esquecimento do que à memória. A memória retoma sempre as mesmas imagens, ela conserva uma situação passada por um longo tempo, impedindo criação. Diferente da memória, o esquecimento deixa passar, permitindo que novas coisas surjam. A criação implica na destruição e no esquecimento, diferente da memória ressentida que é passiva.

O ressentido não consegue criar, pois se atém à memória, repetindo o mesmo e não conseguindo lidar de maneira criativa com a própria vida, pois todas as dores são vivenciadas repetidamente, sem a possibilidade de traçar novos caminhos e relações a partir de uma situação ou sofrimento. O ressentimento impede a capacidade de criação, se mantendo refém da memória e da conservação ao invés da criação e transformação.

Aquele que cria sabe esquecer, e não dá muita importância ao que não o faz bem. Quando retoma uma situação passada, faz apenas para transformar e transfigurar, para a partir dela criar algo novo, mais forte e potente, nunca para rememorar e conservar. O criador é aquele que lida com a impermanência de maneira alegre, assim ele sofre menos, pois rapidamente cicatriza suas feridas e deixa que elas passem, ao invés do ressentido, que recorda a todo tempo suas dores e se prende a elas.

"De tudo o que vê, ouve e vive forma instintivamente sua soma: ele é um princípio seletivo, muito deixa de lado. (...) Descrê de 'infortúnio' como de 'culpa': acerta contas consigo, com os outros, sabe esquecer."
(Nietzsche, em 'Ecce Homo')

Para Nietzsche, a memória é passiva, pois nos mantém na lembrança do passado, retornando sempre um tempo que já foi, nos impedindo de enfrentar o que está acontecendo no agora. Diferente da recordação, o esquecimento nos recoloca no presente. Por deixar o passado para trás, o esquecimento possibilita uma postura ativa e uma ação criativa perante a vida, que liberta o passado para um futuro desejado, apesar de incerto. A vontade criadora é aquela que nos liberta do ressentimento.


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
DIAS, Rosa Maria. Nietzsche, vida como obra de arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. 3 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2017.
MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores. São Paulo: Moderna, 1993.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim Falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.