A existência sem classificações

Autorretrato, Edvard Munch, 1926

A perspectiva existencialista e a atitude fenomenológica não utilizam classificações prévias sobre os modos de ser de uma pessoa, mas se abrem para a experiência de cada um, direcionando a atenção para a relação que estabelece com os outros, com o tempo, com os espaços, com os objetos e consigo mesma, buscando compreender a pessoa em suas singularidades, entendendo os sofrimentos e alegrias como expressão de um modo de existir e de se relacionar.

Nos cursos de psicologia, grande parte da grade curricular prioriza as tendências normativas e classificativas em psicopatologia, que tendem a encaixar o sofrimento humano em categorias como depressão, tdah, toc, boderline, entre outras. Muitos psicólogos tendem utilizar tais classificações em sua atuação profissional. Porém, as classificações partem de certas noções prévias sobre a existência, deixando de lado características singulares e próprias de cada pessoa.

Na primeira metade do século XIX, o filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard ressaltou a existência singular contrariando os sistemas explicativos sobre os modos de vida, apontando que a existência é mais complexa que qualquer sistema que a busque explicar. As explicações muitas vezes particionam a complexidade da existência em classificações, deixando de lado importantes características em meio a generalização, e o que interessa na perspectiva existencialista é justamente a singularidade.

Feijoo (2014) destaca que a filosofia da existência pretende retomar o modo e o contexto onde a existência acontece, ao invés de buscar explicações objetivas sobre ela. O método fenomenológico possibilita tomar contato com o fluxo da vida, do modo como esta acontece no cotidiano, buscando se aproximar dos modos de existir de cada pessoa a partir de sua existência concreta e singular, reconhecendo as particularidades de cada um.

Neste sentido, a perspectiva fenomenológica visa inicialmente deixar de lado qualquer suposição teórica ou classificação técnica sobre uma pessoa, para que se possa aproximar de sua existência a partir da própria existência, em suas manifestações concretas e singulares, reconhecendo as peculiaridades de cada um, compreendendo suas diferentes maneiras de ser e de se pronunciar no mundo.

"Husserl propõe a suspensão de qualquer julgamento, (sobre a existência, sobre as propriedades reais e objetivas do que aparece), abandonando os pressupostos em relação ao fenômeno que se apresenta, ao que denomina de suspensão fenomenológica ou epoché."
(Lima, em 'Ensaios sobre fenomenologia', 2014)

A atitude fenomenológica na psicologia se inicia deixando de lado qualquer teoria sobre a existência e os modos de ser de uma pessoa. Qualquer classificação ou suposição acerca da existência é deixada de lado para que se possa acessar a existência a partir de sua manifestação concreta, do modo como aparece em seu contexto de sentidos. Por isso, não parte de nenhuma teoria acerca da pessoa, pois qualquer classificação prévia pode atrapalhar o contato com a pessoa em suas particularidades.

De acordo com Teixeira (2006), a maioria das psicoterapias existenciais não partem a perturbação mental ou as classificações psicopatológicas como foco principal de sua intervenção, por considerarem esta uma perspectiva reducionista. Ao contrário disso, valorizam existência em sua complexidade e em suas distintas possibilidades de se expressar, ao invés de buscar enquadrar a pessoa em classificações.

Assim, a fenomenologia abandona as pressuposições objetivas sobre os modos de vida, de como sofrer e se alegrar, deixando de lado qualquer tendência classificativa ou técnica sobre a existência. Ao invés de responder o que é a ansiedade ou a depressão, a fenomenologia busca compreender o modo como tal experiência acontece para cada pessoa e seus possíveis sentidos, entendendo a existência enquanto abertura ao mundo, e a pessoa como um ser de possibilidades.

"As ciências naturais procedem pela coleta de dados, propondo hipóteses que explicam os dados, concebendo testes para as hipóteses propostas, e assim por diante. Desse modo, as ciências naturais trabalham indo para além do que é dado na experiência, sempre procurando por leis e princípios que possuam uma relação explanatória com os objetos e processos que são observados. A fenomenologia, em contraste, foca precisamente no que é dado na experiência, abstendo-se inteiramente do método de formular hipóteses e extrair inferências do que é dado para o que se encontra aquém ou além disso."
(Cerbone, em 'Fenomenologia')

Além de não partir de classificações, também não visa a classificar ou enquadrar a existência e os modos de ser, pois não se pretende uma generalização ou objetificação da experiência, mas justamente destacar a esfera subjetiva da existência em suas distinções singulares. Busca-se, portanto, se aproximar de cada existente em suas singularidades, no que cada pessoa possui de peculiar, captando seu modo de sentir e se afetar nas relações que estabelece com o mundo, com os outros e consigo mesma.

Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.

Referências:
CERBONE, David. Fenomenologia. Tradução: Caesar Souza. 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
FEIJOO, Ana M. L. C. A Fenomenologia como Método de Investigação nas Filosofias da Existência e na Psicologia. Psicologia: Teoria e Pesquisa. Out-Dez 2014, Vol. 30 n. 4, pp. 441-447.
LIMA, Antônio Balbino, org. Ensaios sobre fenomenologia: Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty. Ilhéus, BA: Editus, 2014.
TEIXEIRA, José A. arvalho. Introdução à psicoterapia existencial. Aná. Psicológica,  Lisboa, v. 24, n. 3, p. 289-309, jul. 2006.