Cirurgia bariátrica: Da Fenda entre o Corpo e o Ser à Busca por Autenticidade

No passado escrevi um informativo sobre como funciona a avaliação psicológica para cirurgia bariátrica, naquele momento meu único objetivo era explicar quem procura este procedimento o motivo de ser necessário esse contato avaliativo e os impactos de não se evitar esse processo pré-cirúrgico. Hoje volto ao tema, dessa vez não mais escrevendo sozinho, mas dividindo essas linhas com minha colega, sócia e esposa, Kimberlyn Melo, e juntos propomos aqui não apenas um informativo, muito menos um manual, mas que este texto possa de alguma forma ajudar a você buscar uma nova óptica em relação a si e o único instrumento que temos para nos manifestarmos no mundo, o corpo.

Um procedimento de gastroplastia consiste em uma alteração no aparelho digestivo, mais especificamente no estômago, com o intuito de ser um tratamento para obesidade principalmente. Existem hoje uma variedade de tipos de procedimentos para adaptar-se a cada caso e condição física, além de um profundo conhecimento técnico construído em saúde sobre o tema, desde a seleção de quem está apto à cirurgia, o ato em si e o acompanhamento posterior e seus cuidados que vão de medicamentos e dieta à psicoterapia. Sendo uma crescente no Brasil, só no ano de 2023 foram realizadas mais de 80 mil cirurgias e estima-se que mais 8 milhões de pessoas teriam a indicação para o procedimento segundo a  SISVAN (Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional).

Entre o paciente a cirurgia e o médico existe uma pessoa, existe um corpo, existe expressividade de vida, dúvidas e esperanças. Merleau-Ponty, nos proporciona importante reflexão sobre o corpo, compreendendo este não como coisa, nem objeto, muito menos como prisão da mente ou algo do tipo, entende como uma forma de acesso ao mundo, como instrumento de manifestação do Ser, sendo o corpo quem de fato vivencia o mundo. E o que podemos pensar que muda com a modificação deste corpo? A própria forma de viver será diferente, mesmo a experimentação de mundo será outra.

Ao acompanhar processos de pós-cirurgia, pude observar as mais diversas mudanças e tão variadas quando se possa imaginar, a melhora da autoestima, a renovação frente a vida, o olhar a vida novamente como possiblidade. Vi aqueles que voltavam a sonhar, pois não tinham referência de como mudar, de onde mudar e se deviam mudar, volto ao Merleau-Ponty quando este reflete sobre o corpo ainda ser nosso ponto de referência no espaço, organizando o mundo a partir do corpo, situamos a vida partir dele este é nosso ponto de partida para tudo. Corpo este que carrega toda sua história, que pode literal e psicologicamente carregar as marcas do passado e as expectativas do futuro, ou falta delas, sendo então a cirurgia bariátrica um marco, uma possível redefinição de ponto de partida e uma renovação de como este corpo se projeta no tempo e situa-se no espaço a sua volta.

Ainda é necessário refletir sobre o que move o individuo a esta mudança, muito além da perspectiva médica que vai ver peso que diminui e comorbidades que se alteram, refletir sobre a vivencia a partir de um novo corpo e suas novas limitações. Compreendendo a obesidade não apenas como uma questão de peso, mas de situação existencial que molda ou moldou como alguém vivia, como se sentia e sua identidade também. E o que pensar e alteramos o corpo, mas não fazemos qualquer mudança quanto ao Ser que vivencia a partir deste corpo? Os resultados podem ser catastróficos. A partir de Jean-Paul Sartre, podemos refletir sobre a transcendência que surge na liberdade, e o processo de cirurgia pode representar a essa liberdade sendo exercitada, mas na ausência de preparo, como lidará este individuo com todo seu novo contexto e seu novo panorama de vida? Este terá novos limites, novas cobranças sociais e médicas, novas exigências comportamentais, novas percepções da vida, o que pode gerar uma sensação de estar perdido nesse novo contexto de possiblidades, sem saber lidar com as diferenças que surgem.

A relação alimentar que se sustenta em processos de obesidade tem sua história, cada pessoa o faz por perspectivas diferentes, existe o lidar com a ansiedade, existe o que ocupa um vazio, ou o que ajuda a lidar com as frustrações comendo. Existe nestes casos o sentido que se determinou para este processo alimentar, e o que ocupa este espaço agora? Diversos autores dentro da psicologia e filosofia existencial pontuaram sobre o sentido de nossas ações, e a partir deles podemos pensar que uma mudança drástica deste corpo pode levar a algum tipo de crise do sentido, uma vez que o que me levava ao processo alimentar pode ou não ter mudado com a cirurgia ou pode até mesmo agora encontrar novas formas de ser expresso, como em casos recorrentes de compulsões (álcool, compras ou outras drogas).

A partir disso, um processo cirúrgico, como estes que mencionamos, sem o devido preparo, mesmo quando a técnica médica é muito bem-sucedida, pode ser compreendido como algo incompleto, apenas transpondo as questões existenciais para um novo contexto. Dessa forma, olhar para este processo partindo de pensadores como Merleau-Ponty, Sartre, e Frankl, percebemos que a obesidade não é apenas uma condição física, mas uma situação existencial que molda a experiência do sujeito no mundo. O corpo não é um objeto a ser consertado, mas o próprio meio de ser e de se relacionar com a realidade.

A cirurgia, nesse sentido, emerge como um ato radical de liberdade (Sartre). O indivíduo, confrontado com a factualidade de sua condição, decide ativamente redefinir seu futuro. No entanto, o sucesso técnico da cirurgia por si só não garante a realização existencial. O desafio real reside na tarefa de habitar o novo corpo de forma autêntica. É aqui que reside a crucial necessidade do preparo emocional e existencial. Sem ele, a pessoa pode se ver em uma nova crise: com um corpo "curado", mas uma identidade fragmentada. A ambiguidade (Merleau-Ponty) entre o corpo que foi e o corpo que é, a pressão do olhar do Outro (Sartre) e a possível perda de um sentido de vida (Frankl) podem transformar a jornada em uma nova forma de sofrimento.

Portanto, a conclusão é clara: a cirurgia bariátrica não é o ponto final, mas o início de uma nova jornada. O verdadeiro sucesso não se mede em quilos perdidos, mas na capacidade do ser de se reconectar com seu corpo, encontrar um novo sentido e viver sua liberdade de maneira plena. O tratamento da obesidade, para ser completo, deve abraçar a totalidade do ser, reconhecendo que a saúde do corpo é inseparável da saúde da alma.


Quem é o Ser-com? 

O Ser-Com é formado pelos psicólogos Patrício Lauro (CRP 18/03237) e Kimberlyn Melo (CRP18/05145), profissionais dedicados ao cuidado em saúde mental a partir da abordagem existencial-fenomenológica. Nosso propósito é oferecer um espaço de acolhimento e escuta, onde cada pessoa possa se apropriar de sua própria história e existir de forma mais autêntica.

Serviços oferecidos:

Psicoterapia para adolescentes, adultos e idosos (Presencial e online)

- Orientação vocacional

- Avaliação psicológica para cirurgias (bariátrica, vasectomia e plásticas)

Onde estamos:
📍 Sinop - MT

📱 Online para o mundo todo

Contato:
📞 Telefone/WhatsApp: 66 999181015  /  66 996007930
📲 Instagram: @sercompsi

Ser-Com é estar com: consigo, com o outro e com o mundo.


Referências

FRANKL, V. E. Em busca de sentido. Tradução de Walter Schlupp e Carlos A. Bárbaro. São Paulo: Vozes, 2017.

MAY, R. O desejo de ser: o que a ansiedade e outros anseios nos dizem. Rio de Janeiro: Vozes, 2018.

MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 2011.

SARTRE, J-P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 2016. 


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