O REI NU E O PSICOPODER



O que me fascina na história do rei nu é a maneira como o valor se constrói. Os tecelões inventam um tecido inexistente e, ainda assim, mais precioso do que qualquer outro: só os “aptos” poderiam vê-lo. É um jogo genial porque captura a insegurança. Quem ousaria admitir que não vê? Dizer o óbvio (“o rei está nu”) não seria um gesto de lucidez, mas a confissão pública de ignorância.

Assim funciona o poder atual: não precisa esconder a realidade, basta inverter o código que a nomeia. A roupa não existe, mas o valor se sustenta no medo de não estar à altura. 

Essa lógica atravessa nosso tempo. O psicopoder, como descreve Byung-Chul Han, age criando códigos que nos levam a nos vigiar e explorar sozinhos. Ele não chicoteia, não proíbe, não manda. Apenas sussurra: é preciso ter sucesso, é preciso mostrar poder, é preciso evoluir. É a mesma roupa invisível, agora vestida de produtividade, de performance, de felicidade obrigatória, de melhor versão de si mesmo.

Não é um problema individual. A frase “meu problema sou eu mesmo" é o truque mais eficiente desse poder. Parece autonomia, mas é captura. Ao acreditar que a cobrança nasce de dentro, deixamos de ver que ela é cultural, coletiva, histórica. O pacto silencioso se repete: fingimos ver a roupa, fingimos dar conta, fingimos que não estamos exaustos.

No conto, os primeiros a validar a farsa foram os ministros do rei. Aqui entra Foucault: Vigiar e punir mostra esse poder hierárquico, disciplinar, que age pela autoridade soberana. Ninguém desafiaria o rei sem arriscar o posto ou a vida. Mas, no desfile público, o que age não é mais a ordem do soberano, e sim a vergonha. A vergonha de parecer burro, inadequado, ignorante. Aqui, Han e Foucault se encontram. Não se trata de “um depois do outro”, mas de formas de poder que coexistem: a coerção externa e a autoexploração interna, lado a lado.

Chegamos então ao absurdo: vivemos como se fosse natural explorar-nos sem fim. Medimos nosso valor por resultados que não existem, como se fôssemos reis desfilando nus, sustentados pelo olhar coletivo. O sucesso nunca chega, o poder nunca é suficiente, a evolução nunca termina. O que nos veste não é uma roupa, mas o pacto silencioso que transforma a exaustão em mérito.

Só a criança escapa. Ela não teme a solidão de não pertencer, não aprendeu ainda os códigos do jogo. Seu gesto não é a posse da verdade, mas a recusa da farsa. Ao rir do desfile, mostra que a nudez é apenas isso: nudez.

Nietzsche, em Assim falou Zaratustra, fala da criança como a última metamorfose do espírito: depois do camelo, que suporta o peso, e do leão, que luta para conquistar sua liberdade, vem a criança, que diz o sagrado “sim” à vida. Criadora, leve, livre, capaz de começar de novo. A criança da fábula de Andersen ecoa essa mesma potência: ao rir, ao dizer o óbvio, ela inaugura outro mundo possível.

Talvez resistir hoje seja reaprender esse gesto: rir do espetáculo, aceitar o intervalo, a falha, o cansaço. Não como fraqueza, mas como liberdade. Porque o verdadeiro fracasso não está em parar — está em seguir marchando, orgulhoso, vestido de nada.

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