Psicologia positivista e seu papel ideológico

A psicologia crítica se propõe refletir e problematizar o papel ideológico da psicologia positivista, questionando suas bases, que não são tão neutras quanto supõe, mas atravessadas por valores específicos e ideias preconcebidas. Longe de estar comprometida somente com o bem-estar, essa psicologia serve para manter um sistema que preza pela obediência e ajustamento a um modelo específico de normalidade. 

Entre os intuitos da psicologia positivista estão o fortalecimento das características "adaptativas" das pessoas, para uma conformidade com os valores estabelecidos, atuando como um reforço ideológico em manutenção das coisas como estão. Por não reconhecer os problemas nas condições sociais e econômicas, a psicologia positivista desloca as problemáticas para o indivíduo, como se este fosse o único responsável por seu sofrimento, propondo uma visão simplificada de "saúde mental", atrelada a adaptabilidade, reforçando a ideia de uma normalidade social.

"A psicologia reforça o seu culto da normalidade abordando qualquer comportamento que se desvie dessas normas como sendo, por definição, um reflexo de desajustamento individual, imaturidade emocional, patologia mental ou algum outro conceito negativamente avaliado."
(Nick Heather, em 'Perspectivas Radicais em Psicologia')

Temos de nos perguntar a quem serve esse ajustamento? Nas sociedades capitalistas há exploradores e explorados. Os exploradores propagam a ideologia como um mecanismo para os explorados manterem a exploração em seu favor, agindo contra si mesmos, num estado de consentimento passivo. É por meio de uma "servidão voluntária" que se restringe a criatividade humana, a capacidade de mudança e diferenciação, direcionando as pessoas para o cumprimento de seus papéis sociais definidos.

Essa relação de exploração de uns sobre os outros é escamoteada pela própria ideologia, fazendo parecer ser o modo natural de viver, e até mesmo bom. Enquanto isso, os cientistas positivistas mantêm essa ideologia, servindo aos interesses dos exploradores. A psicologia positivista é também uma prática política, atuando a serviço da economia capitalista, visando um controle social, pressupondo que a adaptabilidade social seja algo bom.

"Homens e mulheres que vão para o trabalho, no qual empenham sua própria vida para gozo de outros; jovens que vão para a guerra para serem mortos, sabendo que vão morrer, até com certa satisfação, acreditando que vão defender a civilização ocidental e cristã. E homens que se prestam ao papel de ensinar aos jovens que tudo isso é muito certo e muito justo."
(Leôncio Basbaum, em 'Alienação e Humanismo')

A psicologia moderna, com forte influência da psicologia positivista, busca um ideal de "homem adequado" que se resume a características de eficiência e adaptabilidade. Essa adaptação não é neutra, ela pressupõe certas formas de comportamento entendidas como melhores e mais saudáveis do que outras. Isso resulta numa prática que categoriza o "normal" e "ajustado" como sinônimo de "bom" e "saudável", promovendo uma visão de mundo que privilegia a estabilidade e o controle.

Todas as pessoas que desviam dessas normas logo são rotuladas com transtornos como "neurótico" ou "psicótico". Ao criar uma taxonomia do desvio, a psicologia gera rótulos depreciativos que justificam suas intervenções de controle e ajustamento. Na perspectiva da psicologa crítica, esses rótulos passam a fornecer uma legitimidade científica para o estabelecimento de uma "ordem social", onde qualquer desviante dela é imediatamente visto como patológico.

Ao se concentrar nos "problemas individuais", a psicologia tende a individualizar questões que são resultantes de forças sociais e econômicas mais amplas. A ideologia subjacente a essa prática ignora que vivemos num sistema complexo de limitações impostas por normas, moralidade e condições econômicas específicas. Questões como o desemprego, por exemplo, são muitas vezes analisados como questões internas da pessoa, sem levar em conta suas condições de vida, oportunidades educacionais e econômicas.

Na abordagem positivista há uma visão fragmentada e alienada do ser humano, concebido muito mais como uma peça de uma malha social mais ampla, devendo funcionar em serviço deste social. Ao classificar os indivíduos como "transtornos", como "desajustados" ou "anormais", a psicologia moderna desconsidera as complexas condições sociais, familiares e culturais que configuram o comportamento e os sentimentos, sustentando uma visão limitada e mecanicista da realidade.

A "objetividade científica" promovida pela psicologia positivista esconde suma função conservadora, agindo como um protetor do "fato social", fazendo parecer algo estático e inquestionável, tratando o ajustamento ao status quo como algo naturalmente positivo. O resultado disso é a criação de um consentimento social passivo, onde o "normal" não é apenas estabelecido como um ideal a ser seguido, mas também imposto como a única via "saudável" de existir.

"A nossa sociedade requer que as pessoas se pensem máquinas ou meros organismos. Ela depende crucialmente de as pessoas serem desligadas de sua experiência porque se derem uma vez ouvidos à sua experiência, aos seus anseios de criatividade, amor genuíno, realização pessoal, deixarão de ser os autômatos que a máquina exige. A máquina tecnológica insiste numa atenuação das possibilidades humanas, numa desoladora uniformidade de gosto e num cerceamento das aspirações em seus produtores e consumidores, pois só assim pode continuar a desovar seus produtos redundantes. Por conseguinte, a psicologia de nossa era deve ver os homens como objetos, como organismos emissores de comportamento, porque isso é o que o sistema requer que eles sejam. (...) Temos uma psicologia desumanizante numa sociedade desumanizada."
(Nick Heather, em 'Perspectivas Radicais em Psicologia')

Curiosamente, se a normalidade fosse realmente natural, não precisaríamos de um sistema de controle tão extenso para mantê-la. Mas o que se vê é justamente o oposto: um sistema que se utiliza de psicólogos, psiquiatras e outros especialistas para sustentar a ordem e prevenir questionamentos e dissidências.

Essas noções de "normal" e "anormal", "ajustado" e "desajustado" estão nas bases do trabalho psicológico. Porém, o que é entendido como um problema psicológico, ou algo que tenha de ser submetido a um tratamento? A ciência positivista atua com base em valores sociais, suas justificações e sua validade são baseadas na capacidade de uma vida controlada e ajustada.

A quais pessoas é dirigido esse controle? Quem exerce o controle e quem são os controlados? Como isso é decidido? A psicologia orienta sua prática a partir dos valores daqueles que a praticam, e esses valores encaminham as pessoas para uma determinada direção, servindo para preservar um modo de vida específico, prevenindo e evitando qualquer mudança social.

"A nossa sociedade requer não só uma divisão entre a experiência das pessoas e seu comportamento, mas também uma divisão entre o indivíduo e a sociedade em que ele vive — e isto reflete-se igualmente em nossa psicologia. Os homens podem fazer a sua própria história, criar os seus próprios meios ambientes, e por vezes o fazem; mas é essencial para a continuação da máquina que a maioria dos homens não se aperceba disso. (...) É por esse motivo que, como parte da tentativa de impedi-los de entender isso, existe a divisão entre as disciplinas acadêmicas de psicologia e sociologia; uma delas estuda o indivíduo como uma coisa e a outra estuda a sociedade como uma coisa, e nunca as duas se encontrarão. É também por isso que a psicologia moderna retrata o homem isolado do contexto do mundo criado pelo homem e onde ele vive."
(Nick Heather, em 'Perspectivas Radicais em Psicologia')

A psicologia crítica entende que a concepção de normalidade promovida pela psicologia positivista serve a interesses específicos de controle e estabilidade social. Ao insistir na ideia de que a "saúde mental" e a "felicidade" depende de seu ajustamento a um mundo preexistente, essa prática limita o potencial para mudanças e novas formas de vida. Ao definir o desvio como algo negativo, a psicologia acaba reforçando uma ordem social que impede a inovação e a liberdade.

Por isso a importância de colocar em questão o que estamos aceitando como "normal" e reconhecer as bases ideológicas que sustentam nossa compreensão de "saúde" e "adaptação". Para uma prática psicológica libertadora, afastada de rótulos e padrões impostos, para uma visão mais ampla e integrada do ser humano em sociedade.


Referências:
BASBAUM, Leôncio. Alienação e Humanismo. São Paulo: Global, 1982.
BOCK, Ana M. Bahia; GONÇALVES, M. Graça M.; FURTADO, Odair (orgs.). Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez, 2001.
HEATHER, Nick. Perspectivas Radicais em Psicologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1977.
SERRANO, Alan Indio. O que é Psiquiatria Alternativa. São Paulo: Brasiliense, 1992.

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