O livro "Nietzsche", escrito pelo filósofo francês Gilles Deleuze (1925-1995), apresenta uma introdução acessível ao pensamento de Friedrich Nietzsche, sintetizando algumas suas ideias centrais de maneira clara e concisa, mantendo a profundidade das análises filosóficas.
Deleuze explora a filosofia de Nietzsche, mencionando sobre a transmutação dos valores, a crítica à noção de "Eu", a filosofia aforismática, o papel do filósofo, a vontade de poder, a relação de forças ativas e reativas, e a morte de Deus, apresentando Nietzsche como um filósofo afirmativo, destacando seu papel em reconfigurar o pensamento sobre a vida.
Este livro inclui também um breve dicionário contendo alguns dos principais personagens mencionados por Nietzsche (a serpente, o camelo, a aranha, Cristo, Dioniso e Zaratustra), uma cronologia da obra de Nietzsche, e alguns de seus extratos com citações originais do filósofo alemão.
Alguns trechos do livro:
O primeiro livro de Zaratustra começa por narrar as três metamorfoses: “Como o espírito se torna camelo, como o camelo se torna leão e como finalmente o leão se torna criança”. O camelo é o animal que transporta: transporta o peso dos valores estabelecidos, os fardos da educação, da moral e da cultura. Transporta para o deserto e, aí, transforma-se em leão: o leão parte as estátuas, calca os fardos, dirige a crítica a todos os valores estabelecidos. Por fim, pertence ao leão tornar-se criança, quer dizer, jogo novo e começo, criador de novos valores e de novos princípios de avaliação.
Na doença ele vê de preferência um ponto de vista sobre a saúde; e na saúde um ponto de vista sobre a doença. (...) A doença como avaliação da saúde, os momentos de saúde como avaliação da doença: tal é a “inversão”, o “deslocamento das perspectivas”, em que Nietzsche vê o essencial do seu método, e da sua vocação para uma transmutação dos valores.
Em Nietzsche, tudo é máscara. A sua saúde é uma primeira máscara para o seu gênio; os seus sofrimentos, uma segunda máscara para o seu gênio e para a sua saúde, ao mesmo tempo. Nietzsche não acredita na unidade de um Eu e não o experimenta: relações subtis de poder e de avaliação entre diferentes “eu” que se escondem, mas que exprimem também forças de outra natureza, forças da vida, forças do pensamento - tal é a concepção de Nietzsche, a sua maneira de viver.
Nietzsche integra na filosofia dois meios de expressão, o aforismo e o poema. Estas mesmas formas implicam uma nova concepção da filosofia, uma nova imagem do pensador e do pensamento. Ao ideal do conhecimento, à descoberta do verdadeiro, Nietzsche substitui a interpretação e a avaliação. Uma fixa o “sentido”, sempre parcial e fragmentário, de um fenômeno; a outra determina o “valor” hierárquico dos sentidos e totaliza os fragmentos, sem atenuar nem suprimir sua pluralidade. O aforismo, precisamente, é ao mesmo tempo a arte de interpretar e a coisa a interpretar; o poema é ao mesmo tempo a arte de avaliar e a coisa a avaliar. O intérprete é o fisiólogo ou o médico, aquele que considera os fenômenos como sintomas e fala por aforismos. O avaliador é o artista, que considera e cria “perspectivas”, que fala pelo poema. O filósofo do futuro é artista e médico - numa palavra, legislador.
Os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver. A vida activa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida.
Devemos pensar a filosofia como uma força.
Criar é aligeirar, é descarregar a vida, inventar novas possibilidades de vida. O criador é legislador-dançarino.
Toda a interpretação é determinação do sentido de um fenômeno. O sentido consiste precisamente numa relação de forças, segundo a qual algumas agem e outras reagem num conjunto complexo e hierarquizado. Qualquer que seja a complexidade de um fenômeno, distinguimos bem forças activas, primárias, de conquista e subjugação, e forças reactivas, secundárias, de adaptação e de regulação. Esta distinção não é só quantitativa, mas qualitativa e tipológica. Porque a essência da força é estar em relação com outras forças: e, nesta relação, ela recebe a sua essência ou qualidade.
A relação da força com a força chama-se "vontade".
A vontade de poder, diz Nietzsche, não consiste em cobiçar nem sequer em tomar, mas em criar e dar. O Poder, como vontade de poder, não é o que a vontade quer, mas aquilo que quer na vontade.
É por vontade de poder que uma força dirige, mas é também por vontade de poder que uma força obedece.
Porque a vontade de poder faz com que as forças activas afirmem, e afirmem a sua própria diferença: nelas, a afirmação está primeiro, a negação não passa de uma consequência, como um acréscimo de prazer. Mas a característica das forças reactivas, pelo contrário, está em opor-se primeiro ao que elas não são, em limitar o outro: nelas a negação está primeiro, é pela negação que atingem uma aparência de afirmação. Afirmação e negação são, pois, os qualia da vontade de poder, como activo e reactivo são qualidades das forças.
pertence essencialmente à afirmação ser ela própria múltipla, pluralista, e à negação ser una, ou pesadamente monista.
A vitória comum das forças reactivas e da vontade de negar, Nietzsche chama-lhe "niilismo" - ou triunfo dos escravos.
chama-se doente a uma vida reduzida aos seus processos reactivos.
A morte de Deus é, pois, um acontecimento, mas que ainda espera o seu sentido e o seu valor. Enquanto não mudarmos de princípio de avaliação, enquanto substituirmos os velhos valores por novos, apenas assinalando novas combinações entre as forças reactivas e a vontade de nada, nada mudou, continuamos sempre sob o reino dos valores estabelecidos.
A transmutação de todos os valores define-se assim: um devir activo das forças, um triunfo da afirmação na vontade de poder.
A transmutação significa inversão das relações afirmação-negação.
A afirmação é o mais alto poder da vontade. Mas o que é afirmado? A Terra, a vida...
É de preferência o múltiplo, é de preferência o devir.
O múltiplo é afirmado enquanto múltiplo, o devir é afirmado enquanto devir.
O verdadeiro jogador faz do acaso um objecto de afirmação: afirma os fragmentos, os membros do acaso.
Nós, leitores de Nietzsche, devemos evitar quatro contra-sensos possíveis: 1.º sobre a vontade de poder (crer que a vontade de poder significa "desejo de dominar" ou "querer o poder"); 2.º sobre os fortes e os fracos (crer que os mais "poderosos", num regime social, são, por isso, "fortes"); 3.º sobre o eterno Retorno (crer que se trata de uma velha ideia, retirada dos gregos, dos hindus, dos babilônicos...; crer que se trata de um ciclo ou de um retorno do Mesmo, de um retorno ao mesmo); 4.º sobre as últimas obras (crer que estas obras são excessivas ou já desqualificadas pela loucura).
Fonte:
DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Trad.: Alberto Campos. Lisboa: Edições 70, 2016.