O inferno são os outros, será?


A famosa frase de Sartre, "o inferno são os outros", é alvo de interpretações descontextualizadas e muitos mal entendidos. Neste texto comentarei brevemente sobre o contexto e o sentido atribuído pelo autor.

Esta frase foi escrita por Jean-Paul Sartre, numa peça teatral escrita em 1944, com o título 'Entre quatro paredes' ("Huis clos"). O drama apresenta três personagens num único cenário, o escritor Garcin, a burguesa fútil  Estelle, e uma funcionária dos correios homossexual, Inês.

Garcin era um escritor queria ser herói, mas se tornou covarde, Estelle era uma burguesa fútil que só se preocupava com sua própria imagem, e Inês era uma funcionária dos correios que se sente atraída pela burguesa e tenta conquistá-la. Os três personagens estão trancados num cômodo.

Por estarem fechados no mesmo local, eles precisam se perceber por meio dos olhares dos outros. Deste modo, os personagens começam a declarar os defeitos e fracassos uns dos outros, comentando suas histórias de vida e colocando um contra o outro. Com o tempo, a convivência vai se tornando cada vez mais insuportável.

Logo eles percebem que estão no inferno, porém não há criaturas demoníacas, nem brasas, como descreve a tradição cristã. O inferno, neste caso, são os outros, pois são eles que estão sempre julgando nossos modos de ser e nossas escolhas, o que decidimos e o que fazemos de nossas vidas.
"O bronze aí está, eu o contemplo e compreendo que estou no inferno. Digo a vocês que tudo estava previsto. Eles previram que eu haveria de parar em frente deste bronze, tocando-o com minhas mãos, com todos esses olhares sobre mim. Todos esses olhares que me comem! (Volta-se bruscamente). Ah, vocês são só duas? Pensei que fossem muitas, muitas mais! (Ri). Então, é isso que é o inferno! Nunca imaginei... Não se lembram? O enxofre, a fogueira, a grelha... Que brincadeira! Nada de grelha. O inferno... O inferno são os outros!"
(Jean-Paul Sartre, em 'Entre quatro paredes')
Jean-Paul Sartre (1905-1980) foi um filósofo existencialista e um dos mais importantes nomes da filosofia do século XX, acreditava que as pessoas não possuem uma essência que as definam, mas que constroem seus modos de ser por meio de sua existência concreta. Esse conceito ficou famoso em sua famosa frase "a existência precede a essência".

Para Sartre, somos resultados das escolhas que fazemos e das contingências em que estamos inseridos. Toda escolha que fazemos afeta outras pessoas, pois uma condição de nossa existência é a de estarmos sempre em relação com outras pessoas. 

Quando faço uma escolha, escolho por mim e por toda a humanidade, cada uma de minhas escolhas possui uma implicação ética por estar justamente em relação com as outras pessoas. O outro, neste sentido, possui um papel muito importante na efetivação de minhas escolhas.

Se toda escolha que faço altera a mim mesmo ela, portanto, também interfere na relação que estabeleço com as outras pessoas. É neste sentido que o outro interfere em minhas escolhas, seja concordando ou discordando, apoiando ou recusando, estimulando ou reprimindo.

Todas as escolhas que fazemos envolvem outras pessoas, ao mesmo tempo que tudo o que escolhermos transformar em nós mesmos, também passará pelo olhar e pelo crivo dos outros. É neste sentido que o inferno são os outros, pois segundo esta concepção não há um Deus para nos julgar, nem um local queimando brasa para punir nossos pecados. São os outros que estão, a todo momento, nos observando, julgando e medindo.

O olhar do outro nos petrifica para este, nomeia a pessoa que somos do modo como ele nos percebe, e toda percepção é uma interpretação. O conflito é uma condição da relação humana, visto que cada pessoa parte de um referencial e possui buscas, desejos e expectativas diferentes.

Somos livres para fazer escolhas, porém responsáveis pelas escolhas que fazemos. Do mesmo modo que nós, os outros também fazem escolhas e ao efetivarmos as nossas escolhas, percebemos que nos esbarramos na necessidade do outro de fazer suas próprias escolhas também.


Por Bruno Carrasco, terapeuta, professor e pesquisador, graduado em Psicologia, licenciado em Filosofia e Pedagogia, pós-graduado em Ensino de Filosofia, Psicoterapia Fenomenológico Existencial e Aconselhamento Filosófico. Nos últimos anos se dedica a pesquisar sobre filosofia da diferença e psicologia crítica.